Entro no refeitório do quartel e cumprimento o capitão Wilson. Ele está fazendo o almoço (me liberou dessa tarefa hoje). Está assando um peru no forno. Isso me lembra o Natal.
Esse Natal será o segundo nos Estados Unidos, farei um Natal bem brasileiro para o meu filho. Estamos no mês de abril ainda, mas já penso no que preparar para ele.
- Perdida nos seus pensamentos? - pergunta o capitão que liga a torneira da pia e lava as mãos.
- Um pouco. - Minha boca saliva com o cheiro gostoso do peru. O capitão me encara com um sorriso. - Quer me dizer algo?
- Ah... Você gosta de peru?
- Gosto. - Espero ele dizer algo, mas fica novamente em silêncio. - Se não for inconveniente, pode me dizer por que você decidiu ser bombeiro?
- Claro. Eu gosto de ajudar as pessoas. Queria estar preparado para quando precisassem de mim, quando pedissem por socorro. Então eu me tornei bombeiro. Agora eu sei como ajudar e sei como não falhar. As pessoas se sentem seguras perto de mim. - Ele enxuga as mãos num pano.
- É um propósito genuíno e bonito. - Contenho um sorriso. Ele parece ser um verdadeiro herói dos filmes clichês. É um homem que merece a posição que se encontra.
- E você?
- Eu vi um bombeiro e disse para mim mesma: "Talvez eu me dê bem nisso", então decidi fazer o curso. - Dou de ombros. É minha história, não é bonita como a dele, mas eu vou mentir por quê?
Ele ri.
- Desculpa, eu não tô rindo de você. É que eu esperava algo de superação ou coisa do tipo.
- Você não perguntou isso para muitas pessoas, não é?
- Você é a primeira.
- Bom, capitão, não são todos que têm uma história bonita para contar.
- O que eu contei pra você não é grande coisa. - Ele coloca os cotovelos na bancada e apoia a cabeça nas mãos.
- Bom, o senhor fez o resumo do resumo. Deve ter algo de cortar o coração no meio da sua história.
- Talvez. Talvez algum dia eu conte. - Ele vira de costas e abre o forno. - Em alguns minutos vocês vão poder devorar esse peru.
Eu tô precisando mesmo devorar algum tipo de peru.
- Dias! - Jin me chama da porta da garagem. - Tem um cara lá fora querendo falar com você.
- Ele... disse o nome? - Quase perco a voz. O meu coração se acelera. Deve ser ele. Só pode ser.
- Rubens.
Rubens. Não sei se eu fico aliviada de poder finalmente acabar com todo o meu tormento ou se fico apavorada. Estou com medo de como ele vai agir, mas não vou fraquejar. Não vou demonstrar medo para ele.
- Dias? Laura? - Jin estala os dedos na minha frente.
Sorrio. Eu não posso ficar abalada. Não vou deixar o Rubens estragar minha vida.
- Eu vou vê-lo. Obrigada. - Saio da cozinha e passo pela garagem saindo do quartel.
Aqui está ele. Rubens está com uma criança no colo. É uma menina, já deve ter uns 3 anos.
Lembro do momento em que ele me contou que engravidou outra. Minha vida já estava ruim por descobrir que ele era um assassino e então ele terminou de arruiná-la.
As memórias passam pela minha mente rapidamente. Nós dois adolescentes, a gravidez, o casamento...
Continua o mesmo, mas agora tem uma tatuagem ridícula de lágrima perto do olho. Passou tanto gel que o cabelo está sem cachos e duro. Ele carrega uma bolsa rosa, deve ser para as coisas da criança.
Ela realmente estava grávida...
Imaginei que Rubens já chegaria me puxando pelos cabelos e me chamado de puta, mas não. Ele tem cara de cachorro abandonado. Pelo telefone ele não estava tão cabisbaixo.
- Não vai falar nada? - Ele dá um passo à frente. - Talvez perguntar o nome dela?
- Eu te odeio - sussurro.
- Cê não me odeia, não. Até pouco tempo atrás você era obcecada por mim. Você não é mulher de esquecer alguém facilmente, ainda deve me amar.
- Tenho nojo de olhar para você. Sua voz me dá ânsia. - Meu corpo esquenta de ódio.
Sua expressão muda, ele está ficando com raiva.
- Eu tô tentando ser paciente, mas você não tá ajudando. Eu quero ver o meu filho!
- Abaixa o tom de voz, porque você não está na sua casa - sussurro, rangendo os dentes. - Pra chamar o Joca de filho você tem que ser pai. Para ser pai você tem que ser homem e homem você não é! Aprende a ser gente primeiro e depois nós conversamos.
Ia entrar, mas ele puxa minha mão e eu rapidamente a puxo de volta sentindo nojo. Para mim, ele é como uma bactéria.
- Eu quero o Joca!
A menina começa a chorar.
- Não faz escândalo aqui - digo com uma imensa vontade de matá-lo. - Depois nós vamos ver esse assunto. Tenha piedade dessa menina também. Ela não precisa presenciar isso.
- Volta pra casa comigo. Vamos reconstruir a nossa vida!
- Só volto para casa morta, em um caixão lacrado pra ser enterrada ao lado dos meus avós. Deu para entender?... - Espero ele responder, mas ele fica calado com um olhar sério. - Vou receber esse silêncio como uma resposta afirmativa. Então agora vá embora! - Aponto para a rua.
Dou as costas para ele e entro na garagem logo vendo o capitão.
Céus, como vou explicar isso?
- O que foi isso, Dias? - Sua preocupação é nítida. - Quem é aquele? - Ele olha por um segundo para trás de mim. - Pode falar pra mim.
- O meu marido. É... Eu preciso resolver um assunto muito urgente com ele. Então gostaria de pedir permissão para sair do quartel. Eu voltarei em breve. - Engulo em seco.
- Dias, você tem certeza que quer ir?
- Sim.
- Tem certeza que quer ir? - pergunta mais devagar.
- Sim - digo sem convicção.
- Eu não acredito em você. Olha, você não precisa ir. Eu não sei o que conversaram, mas eu ouvi o tom. Posso chamar a polícia e isso vai ser resolvido. Aquela é sua filha?
- Não. Só dele.
- E você quer que ele vá embora?
Eu quero, quero que ele vá embora! Melhor, quero que desapareça para sempre, mas não quero dizer isso ao capitão. Não quero envolver ninguém do trabalho nos meus problemas pessoais, mas será que não seria realmente melhor eu confiar no capitão Wilson?
Olho para trás. Rubens só deixará de ser um problema na minha vida se eu matá-lo. Com ele aqui a minha coragem está indo embora aos poucos e eu nem imaginava que ele traria essa menina. Eu não sei o que fazer.