Nino olhou para mim e impediu o irmão de tirar a cueca do meu tio. Nino andou em minha direção. - Você quer ouvir o que ele tem a dizer antes de ir?
Eu não tinha certeza, mas dei um pequeno aceno de cabeça.
Nino voltou e tirou a meia da boca do meu tio. - Sinto muito, - Durant resmungou. - Por favor, me perdoe. - Seus olhos me imploravam.
Nino olhou para mim, os olhos cinzentos e frios sem emoção, apesar do que ele estava fazendo com meu tio. - Você o perdoa?
Eu poderia perdoá-lo? Você pode perdoar ter sua infância destruída? Ter sua inocência arrancada de você? Perder a confiança infantil em sua família da pior maneira possível? - Não, - eu disse.
Nino enfiou a meia de volta na boca de Durant.
Eu tive que sair quando Nino colocou a faca no peito do meu tio. Eu fechei a porta e respirei trêmula, em seguida, enrijeci quando notei Fabiano vindo em minha direção, carregando sacos de transfusão. Eu me movi para o lado para que ele pudesse entrar, mas ele retornou um momento depois com os braços vazios. - Vou levá-la para o quarto de Remo. Nino vai se juntar a você mais tarde.
Eu não disse nada, apenas observei o homem alto e loiro. Nós andamos em silêncio, e quando eu entrei no quarto de Remo, ele me deixou sozinha. Fui até a cama e rastejei sob os cobertores, olhando para a escuridão. A cama estava muito cheia com as lembranças do passado, mesmo que não tenha sido a mesma cama onde acontecera.
Saindo da cama, me enrolei em uma das poltronas, sem me incomodar com um cobertor. Muito mais tarde, a porta se abriu. Quando a luz derramou do corredor, pude ver Nino vestido com seu traje de casamento. Então ele fechou a porta, nos banhando na escuridão. Ele parou no meio do caminho para a cama. - Você pode dormir na cama. Remo não vai exigir isso hoje à noite. É nossa.
Engoli. - Eu não tenho dormido em uma cama em anos.
- Por quê? - Não havia julgamento em sua voz, apenas uma leve curiosidade.
- Porque foi aí que aconteceu, - eu engasguei.
- Ele implorou pela morte no final, se lhe serve de consolo.
Eu respirei fundo. Servia? Não deveria, mas parte de mim se sentiu consolada. - Obrigada, - eu sussurrei.
- O poder que ele ainda detém sobre você... é algo que você tem que quebrar.
Levantei-me e caminhei lentamente em direção à cama. Na penumbra eu só conseguia distinguir a forma alta de Nino, mas tive a sensação de que ele estava me observando.
Deitei-me e me cobri com o cobertor.
A sombra de Nino mudou e pude ouvir roupas sussurrando. Ele estava saindo do seu traje de casamento. Os resquícios de medo fizeram minha respiração mudar. Talvez sempre seria assim. Ele tentaria de novo? Eu era sua esposa depois de tudo.
- Você deveria tentar dormir, - ele disse calmamente, enquanto deslizava sob as cobertas. Ele não chegou perto o suficiente para que nos tocássemos.
- Eu não consigo.
- Os pesadelos não vão parar porque ele está morto, - disse ele, e eu sabia que ele estava certo, mas era inquietante que ele soubesse. Eles o chamavam de gênio, tão torcido e perigoso quanto inteligente. E percebi que ele era tudo isso e muito mais. Monstruoso.
Cada corte que ele infligira ao tio Durant na minha presença falava de precisão clínica, de anos de prática, e eu sabia que o que aconteceu depois que eu saíra tinha sido pior.
Ele implorou pela morte no final.
- Mas ele nunca mais vai machucá-la, e ninguém mais o fará, - disse ele, como se suas palavras fossem lei.
Por causa da mensagem sangrenta que ele enviou hoje. - E você? - Silêncio. - Você vai me machucar?
Ele se mexeu e a cama se moveu sob seu peso. Eu respirei fundo antes de poder me conter. Mesmo no escuro, pude vê-lo virar-se para mim. - Eu não vou te machucar também. Fisicamente, pelo menos.
- Mas você vai abusar de mim mentalmente? - Eu perguntei.
- Não. Não intencionalmente. - Ele fez uma pausa. - Mas eu não sinto.
- Sente o quê?
Pena? Misericórdia?
- Emoções.
Eu tentei entender o que ele queria dizer. - Você não sente emoções?
- Não desde que eu era criança. - Ele fez uma pausa. - Não como as pessoas costumam fazer. É difícil explicar.
Um sociopata. Era assim que pessoas como ele eram chamadas.
- Eu os reconheço e posso simulá-los de maneira satisfatória, se quiser, mas não os sinto.
Eu não sabia o que dizer. Talvez sua admissão devesse ter me assustado. - Então, o que isso significa para nós?
- Isso significa que eu nunca vou agir com raiva, medo ou tristeza, mas...
- Mas nunca com amor ou afeto também, - eu terminei. Eu me perguntava por que ele havia matado meu tio se não fosse por raiva. Era por hábito? Porque era assim que as coisas eram resolvidas em Vegas? Mesmo em Nova York, qualquer homem feito teria matado o homem que desonrou sua noiva.
- De fato.
Eu não precisava de amor, desde que soubesse que estava a salvo dele. Além disso, eu tinha vivido sem afeto real por anos. Eu poderia viver mais. - E quanto ao desejo?
- Isso não é uma emoção. É um impulso animalesco. E basicamente humanos são animais.
Não tão segura afinal de contas. - Então você age com desejo. - O medo estava de volta na minha voz, e meu corpo enrijeceu com isso.
No escuro, pude ver o leve movimento de seu rosto. - Eu ajo. E para ser sincero, desejo o seu corpo.
Lá estava. Meu pulso acelerou e pude sentir uma nova onda de pânico começar a subir.
- Mas eu não vou agir sobre isso.
- Você não vai?
- Em algum momento pode ser necessário gerarmos descendentes, mas até lá eu posso procurar outras mulheres para lidar com minhas necessidades... se é isso que você prefere?
Tão clínico e sem emoção. - Sim, - eu disse, aliviada por ele ter sugerido algo assim. Eu poderia ter chorado de alívio.
Ele não disse nada. Para ele isso estava resolvido. Fechei meus olhos. Parecia que um peso havia sido tirado do meu peito e eu podia respirar livremente de novo.
***
Eu lutei com ele, tentei empurrá-lo, mas ele era muito forte. Ofegante, acordei e entrei em pânico porque havia algo me segurando. Eu lutei com mais força, o terror arranhando meu peito. Apenas um dos meus braços estava livre. Eu me debati.
Uma mão firme pegou meu pulso e eu soltei um som abafado.
As luzes se acenderam e eu pisquei contra o brilho.
- Acalme-se, Kiara. Você está emaranhada nas cobertas.
Levei um momento para perceber quem estava falando, quem estava segurando meu pulso. O rosto de Nino entrou em foco acima de mim e me encolhi no travesseiro. Eu puxei o pulso que ele estava segurando e ele me soltou.
- Deixe-me ajudá-la. - Ele estendeu a mão para mim e eu endureci, observando sua mão. Ele pegou as cobertas e puxou. Elas se soltaram e eu estava livre. Eu respirei fundo.
Seu cabelo estava desgrenhado e, sem estar penteado para trás, ou em um rabo de cavalo curto, ele parecia mais humano, quase acessível. Claro, isso mudou no momento em que meus olhos mergulharam abaixo de sua garganta, onde suas tatuagens começavam. Quase cada centímetro de seu torso estava coberto por elas. Elas mal tocavam seu pescoço, então não eram visíveis se ele usasse uma camisa. As tatuagens serpenteavam por cima do ombro, por suas costas e desciam pelos braços, alcançando os pulsos como mangas. Eles não escondiam o contorno dos músculos ou as cicatrizes levantadas.
Eu engoli e sentei. Minha pele estava escorregadia de suor, mas eu tremia. - Eu não estou acostumada com tanto espaço. A espreguiçadeira onde eu dormia não permitia que eu me movesse o suficiente para me enredar assim.
Nino ainda estava apoiado em um dos braços. Seu olhar percorreu meu rosto, e isso me fez consciente da nossa proximidade e da maneira rude que o acordei. Ele deve ter percebido que tipo de negócio ruim tinha conseguido agora. Eu não era nada como o prêmio prometido. Ele não podia me reivindicar e eu roubava o seu sono. - Eu sou uma bagunça, - eu sussurrei. - Pelo menos, você não precisa se preocupar com outros homens se interessando por mim.
- Eu não estou preocupado com isso, - disse ele em voz baixa.
Eu inclinei minha cabeça. - Você descobriu que recebeu um prêmio com defeito?
- Com defeito? - Ele perguntou.
Eu fiz um sinal para mim mesma. - Quebrada. Eu não sou o que foi prometido. Você deveria me devolver.
Nino se sentou e nos aproximou. Eu me forcei a permanecer parada, mas meu corpo ficou tenso. Seus olhos cintilaram em mim, talvez percebendo minha reação, mas não recuou. - Recebi a promessa de uma mulher Vitiello em casamento. Uma mulher com beleza e graça. Você cumpre minhas exigências.
Eu olhei. - Você acha que eu sou bonita?
- Achar sugere que nasceu da minha imaginação, mas sua beleza é fato. E a razão pela qual não me preocupo com o fato de homens agirem sobre você é porque você é uma Falcone agora, minha esposa, e em Las Vegas ninguém nos desafia.
Eu engoli mais forte.
- A escuridão tem poder sobre você porque ele te machucava à noite?
Eu balancei a cabeça, seguido por outro duro engolir.
- Suas noites estão seguras. Você está segura agora, Kiara. Mesmo no escuro não há nada que você tenha que temer, ninguém, porque estarei lá e eles terão que passar por mim. E ninguém nunca venceu contra mim. Eu sou a coisa mais perigosa no escuro, mas você não tem que me temer.
Eu abaixei meus olhos, não entendendo. - Por quê?
- Porque o quê?
- Por que eu não tenho que temer você? Você é um Falcone.
- Eu sou. E meus irmãos e eu protegemos uns aos outros porque somos uma família e protegemos Fabiano porque fizemos dele uma família, e agora vamos protegê-la porque você é minha esposa e isso faz de você família também. É assim que a família deve ser, você não acha?
Eu olhei para ele com um sorriso trêmulo. - Foi assim que a sua família criou você? Como seu pai te criou? Porque meu pai me batia e matou minha mãe em uma tentativa de salvar a própria vida. Minha tia Egidia e tio Félix me trataram como um fardo e pária porque meu pai era um traidor, e meu tio Durant, ele... ele... - Eu ainda não conseguia dizer.
- Meu pai e minha mãe nunca foram da família. Eles eram sangue, nada mais. Meus irmãos e eu somos sangue, mas também decidimos ser mais, ser uma unidade. Nós somos sangue e família escolhida. E nós protegemos a família. - Sua expressão era mais animada do que eu já tinha visto, e me perguntei se ele percebeu isso... se ele realmente era tão sem emoção quanto dizia ser. - Se você optar por ser uma Falcone, se você optar por ser nossa família, se você optar por ser minha não apenas no papel e porque é seu dever, então nós iremos protegê-la.
- O que eu tenho que fazer para ser uma família? Para ser sua?
- Seja leal. Seja confiável. Esqueça sua família de sangue e Nova York. Corte os laços que a ligam a eles e se torne uma Falcone. Somos nós contra o resto. Sempre será assim.
- Eu posso fazer isso. - Nada me segurava em Nova York. A única pessoa com quem eu me importava e que se importava comigo era Giulia, e mal nos víamos porque ela morava na Filadélfia e eu morava em Baltimore com os pais dela. Ela também tinha filhos de Cássio para cuidar.
Ele assentiu e reclinou na cama. - Tente dormir agora.
Deitei-me de lado e Nino apagou as luzes. Como sempre, meu corpo enrijeceu de medo no escuro. Eu me concentrei na respiração calma de Nino. Ele estava longe demais para eu sentir o calor de seu corpo, mas eu o ouvia. Ele não estava dormindo. Não sei por que eu sabia disso, apenas sabia. Fechei meus olhos e contei sua respiração até o sono me arrastar.
***
NINO
A respiração de Kiara permaneceu tensa por muito tempo depois do pesadelo. Eu sabia que ela estava tentando me fazer acreditar que tinha adormecido, e permiti que achasse que estava tendo sucesso. Era curioso com que frequência às pessoas esqueciam os pequenos detalhes quando se tratava de sua linguagem corporal. Respirar no sono tinha um aspecto diferente de quando acordado, especialmente se seus momentos de vigília estivessem cheios de medo.
O medo de outras pessoas era algo que eu estava acostumado; as pessoas me temiam por causa do meu nome e minha tatuagem da Camorra. Mesmo que não me conhecessem, me temiam porque me viam na gaiola ou porque percebiam que eu não sentia. Perturbava profundamente a maioria das pessoas quando percebiam que minha expressão vazia não era forçada. Era natural.
Kiara se mexeu um pouco. Ela estava dormindo agora, mas nem minha mente nem meu corpo ansiavam por dormir. Normalmente, não tinha dificuldade em encontrar o sono depois de torturar alguém. Isso não acelerava meu pulso, nem fazia meu sangue ferver, e ainda que desta vez houvesse uma inquietação subjacente em meus membros enquanto eu me deitava ao lado de Kiara.
Eu não tinha certeza porque tinha reagido tão fortemente. Talvez porque como minha esposa, me senti obrigado a protegê-la.
Eu saí da cama e saí do quarto. A casa e os jardins estavam tranquilos há esta hora. As pessoas tinham saído da festa enquanto Remo e eu estávamos ocupados com Durant. Presumi que Luca os aconselhou a se despedirem. A escuridão nunca abrigara horrores para mim como fizera para Kiara. Eu gostava da sua tranquilidade pacífica. Desci e segui uma leve brisa em direção às janelas francesas. Como esperado, Remo também estava acordado. Ele estava no alto da colina e olhava para o oceano. Ele não se incomodou em vestir uma calça ou camisa depois que terminamos com Durant. Estava apenas de cueca.
Seu corpo enrijeceu brevemente com a minha aproximação, mas então seus músculos relaxaram. Eu parei ao seu lado, mas ele não se virou para me olhar. O cheiro de cobre inundou meu nariz e meus olhos percorreram seu corpo. Mesmo na luz do luar, era óbvio que ele não se limpara ainda.
- Por que você ainda está coberto de sangue? - Eu perguntei curiosamente.
- Quando já houve um dia sem sangue em nossas vidas? - Ele jogou minhas palavras anteriores de volta para mim. Eu fiz uma careta. Remo estava com um humor estranho.
- Você sabe que dia é hoje?
- 25 de Abril, - eu disse, mas sabia que não era para onde ele estava indo com suas palavras.
Ele virou a cabeça e sua expressão teria feito a maioria das pessoas correr. - É o maldito aniversário dela.
- Eu sei.
- Neste exato momento ela está tomando uma respiração, uma respiração que não deveria tomar. Ela deveria queimar no inferno.
Meu peito se apertou como fazia às vezes quando Remo se sentia obrigado a mencionar nossa mãe. - Ainda podemos matá-la, - eu disse.
Remo fechou as mãos em punhos. - Sim. Nós poderíamos. - Seus olhos me avaliaram. - Quatorze malditos anos e ela ainda está respirando.
- Poderíamos pedir ao Fabiano para fazer isso. Ele entenderia.
- Não, - Remo rosnou. - Esse dia é problema nosso. E se alguém tem que matar a nossa mãe, seremos nós. Juntos. - Ele estendeu a mão, sua tatuagem da Camorra em exibição.
Eu balancei a cabeça e segurei seu antebraço enquanto ele segurava o meu. - Eu andaria no fogo ardente por você.
- Você já fez, Remo, - eu disse.
Ele soltou meu braço e respirou fundo. - O cheiro de sangue sempre me lembra daquele dia. Não é irônico considerando quanto sangue nós derramamos ao longo dos anos? Você pensaria que abafaria aquele maldito dia.
- Algumas coisas ficam com você, - eu disse.
Remo assentiu. - Você está aqui, suponho que não fodeu sua esposa.
O passado dela também ficou com ela. Matar o tio não mudou
isso.
- Matar nossa mãe mudaria as coisas para nós? - Ele perguntou baixinho.
Eu considerei isso, mas pela primeira vez não sabia a resposta. - Não sei.