Eu duvidava que Merlia alguma vez ja teve que fazer isso. Ela se aproximou das selas no chão, abriu os bolsões e encontrou o tecido. O embolando nos braços rolou seus olhos ao redor e deixou o pano no chão, ela caminhou para dentro da floresta, ouvi o som de algo sendo cortado, um galho partindo e sendo arrastado. Merlia voltou com três galhas, sentou no chão, com um punhal em mãos, cortando a base de cada uma, as transformando em lanças de madeira. Avaliou se estava afiada o bastante, cravou o punhal na terra e se levantou, cravando no chão paralelas as duas galhas e colocando por cima a outra, como uma viga.
Eu estava parado, sentado sobre os calcanhares com o fogo na pequena fogueira começando a criptar, quando ela se abaixou, pegou o tecido e lançou para cima. Prendendo as pontas, e bateu as mãos afastando a sujeira e observando seu trabalho. A essa altura, a noite ja havia finalmente começado a cair.
- Serve por hora!_ ela sussurrou indo em direção ao riacho correndo ao fundo, que deixava um barulhinho no ar de sua água corrente.
Eu continuei olhando para a pequena tenda, e olhei por cima do ombro, através a fumaça que subia espantando os insetos, a assistindo lavar as mãos e depois lavar o rosto e alisar o pescoço.
Bom, parecia que a princesinha mimada sabia fazer alguma coisa útil.
***
A noite tinha caído completamente mais uma vez. Aquele era nosso segundo dia de cavalgada, e foi tão silencioso quanto o primeiro. Merlia não fez nenhum esforço para falar comigo, e na noite passada, ela apenas comeu em silêncio e se deitou embolada em sua capa dentro da tenda, me deixando de vigia.
Naquela manhã eu havia acordado escorado no tronco com o barulho do farfalhar de algo, e a encontrei ja arrumando tudo para nossa andanças antes do amanhecer.
Mas agora, estávamos em silêncio olhando para o fogo, a noite escura com algumas estrelas acima de nossas cabeças, e os cavalos dormindo quietos depois de merecido descanso.
Subi meus olhos, reparando no brilho do fogo refletido em suas íris verdes, enquanto ela observava distraída as faíscas subirem rodopiando a cada criptar da lenha.
Suspirei puxando meu galho onde havia espetado um pedaço de queijo e levado brevemente ao fogo, e assoprei antes de estender para ela.
Merlia saiu de seus pensamentos confusa e encarou o queijo, levando algum tempo para aceitar.
- Qual é o real motivo de estarmos indo para Avarya?_ perguntei quase em um sussurro partindo um pedaço de pão e estendendo para ela.
Merlia me avaliou pensativa, me encarando de esgueira antes de também aceitar o pedaço de pão.
- Meu pai acha que Avarya está conspirando algo. _ ela finalmente sussurrou e fechei minha boca que estava prestes a morder o pedaço de pão e a encarei sério dentro dos olhos. Merlia arrancou uma lasca de seu pão, e voltou a encarar a fogueira _ Não estamos indo para um baile. Estamos indo como informantes de Dazzo.
- E o que necessariamente estaremos lidando?
- Não sei! Mas eles não devem desconfiar. _ Ela murmurou e soltei uma risada nasal de sarcasmo.
- E estamos indo naturalmente não é? Olhe só nossa belíssima comitiva!_ apontei para Trovão e Escuridão, que parecia realmente ter sumido na... escuridão! Ele era só um vulto no meio da noite.
- Estou levando um pequeno acordo como desculpa. Está próximo do dia do baile, eles seriam obrigados a nos abrigar até lá. Isso nos daria tempo de manter olhos e ouvidos atentos a qualquer coisa._ Merlia finalmente comeu alguma coisa e balancei minha cabeça em negativa
- Se eles estiverem conspirando algo contra Dazzo, certamente não serão tolos de cometer erros diante de nós! _ resmunguei e ela concordou apenas com o balançar de cabeça, parando de comer. _ Coma direito!_ praguejei e ela negou.
- Vamos precisar de comida. Em hipótese alguma coma ou beba algo deles! _ ela sussurrou séria me olhando de esgueira, e apontou com o queixo para sua sela_ Há algumas coisas na bolsa. A duquesa de Bonthor mandou... Pomadas para ferimentos, folhas para chás, antídotos contra venenos. Ela tentou prever qualquer coisa que pudesse nos acometer na viagem.
- Estamos falando da Helena... Me impressiona que ela não tenha mandado uma carroça de coisas para nós.
Merlia riu baixinho, sua cabeça baixa e pisquei cético sob aquele som, vendo seu peito balançar.
- Acho que Sire Artur estaria nessa carroça. Amarrado e amordaçado...mas estaria lá.
Acabei rindo também, e cravei um novo pedaço de queijo no espeto e levei ao fogo.
- Você se lembra quando sua tia Áster acertou a ponta do chicote no meu irmão?_ meu sorriso aumentou ao me lembrar de tal momento e Merlia concordou rindo também um pouco mais alto. _ A cara de Sire Artur, eu nunca irei me esquecer...
- Eu não sei como consigo me lembrar dessas coisas. Éramos tão pequenos! _ ela balançou a cabeça em negativa. _ E aquela vez que nós, sem querer, matamos o falcão do seu pai em nosso treino arco e flecha?
Abracei minha barriga ao me lembrar de como todos nós observamos a pobre ave cair dura no chão, e sairmos correndo cada um por si.
- Acho que eu nunca te contei... _ disse entre o riso_ Yan, Gideon e eu enterramos o falcão para que meu pai nunca soubesse o que aconteceu com a ave.
Merlia engasgou com o pão, dando murros secos no peito, enquanto ela me olhava de olhos arregalados. Ela engoliu em seco.
- Quem foi mesmo que atirou aquela flecha?
- Sua irmã Eliza.
Ela riu balançando a cabeça em negativa com um sorriso largo em seu rosto.
- Mary, Eliza e eu uma vez pintamos a armadura de nosso pai. Flores, estrelas e coroas. Eu me lembro de pintar todos nós de mãos dadas... _ ela contou com os olhos brilhantes e me encarou humorada _ Meu pai só viu no dia do festival, quando ele ia ter uma justa. E mesmo assim ele lutou, com sua armadura um verdadeiro desastre...
- Eu me lembro disso. Lembro do meu pai gargalhando, apontando para as flores... Isso só durou até ele ver o que tínhamos feito no rainha do mar. Ou melhor, quando levamos o rainha do mar...
- Eu também me lembro disso. E de seu pai nadando atrás do barco enquanto acenamos para ele.
Pisquei nostálgico olhando para o fogo.
- Eu me lembro como era bom quando nos estávamos todos juntos... E corríamos pelos jardim, e nos escondemos. As vezes, nos esquecemos de alguém que ficou escondido e parecia que o jogo nunca tinha fim...
Ela riu balançando a cabeça em negativa e apontamos juntos um para o outro rindo.
- Joseph e a árvore oca!_ dizemos juntos e rimos deixando nossos ombros caírem.
- Seu pai ficou louco procurando ele o resto da tarde e a noite também. Todos nós estávamos acreditando que ele tinha sido sequestrado...
- E meu irmão só apareceu no outro dia, bocejando... Porque ele havia pegado no sono dentro da árvore oca. _ ela terminou de relembrar e nós rimos baixo com nossos peitos sacudindo. Merlia maneou a cabeça _ Isso só durou até nós dois acabarmos com tudo.
- Nós dois? _ praguejei e ela apertou as sobrancelhas sutilmente _ Que eu me lembre você começou a gritar comigo como uma louca por causa daquele porco selvagem.
- Você foi um maldito ladrão! Eu tinha capturado!
- Você só tinha o ferido! Eu capturei, matei e levei...
- Aquele porco era meu!_ ela rosnou entre os dentes com ressentimento _ E aquele desejo também! Você estragou tudo naquele dia!
- Eu estraguei? Oh! Me desculpe se a donzela não conseguiu o que tanto desejava! Eu ganhei a caçada e tinha o direito daquele desejo. Uma flecha no lombo do porco não era a garantia que você tinha ganhado!
- Eu ganhei!
- Você perdeu! Assim como todos os outros que também juram que ganharam! E desde então você se tornou impossível de suportar e...
Merlia jogou o pão no fogo com frieza e se levantou, caminhando para a tenda.
- Você realmente quer dizer isto?_ ela rosnou pegando sua capa no bolsão e a vestindo_ Vou foi a única pessoa que confiei dizer o que queria ganhar. Você sabia o quanto aquilo era importante para mim!
- Ir ao baile da princesa Rosyanne era importante para você?_ perguntou com desdém e Merlia trocou o peso do corpo.
- E você gastou seu pedido com um barril de vinho._ ela grunhiu.
- Então fui eu que comecei essa briga entre nós? _ perguntei debochado e ela entrou na tenda
- Pelo que me lembro foi você e seu orgulho que começaram essa!_ ele cuspiu as palavras e se deitou se escondendo completamente dentro de sua capa _ Porque você nunca consegue admitir o quão imbecil você foi e as vezes é..._ ela murmurou e bufei rolando os meus olhos ao redor.
- Eu ficaria feliz se não precisasse lidar com vossa majestade, a garotinha mimada do papai.
- Então o faça! Estou já estou ficando farta disso tanto quanto você!_ ela sussurrou e a olhei de esgueira.
A lenha se quebrou, deixando um estralar no ar. Apertei minhas sobrancelhas, voltando a olhar para o fogo e cruzei os braços frente ao peitoral.
- E por que não o fez?
Ela não me respondeu, meu peito subia e descia pesadamente mas lento enquanto eu voltava a olhar para ela dentro da tenda.
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Ta explicado o que aconteceu com o falcão do Lucien... Kkkkkkkk
Boa leitura!
❤️