Nos bancos de trás, minha mala feita às pressas está ocupando boa parte do assento e na minha cabeça, a notícia do falecimento da minha avó Leona ainda paira como uma nuvem de culpa, me lembrando que eu tive a oportunidade de conversar com ela ainda ontem, mas estava ocupada treinando para a corrida de início da temporada que vai ocorrer meados do mês que vem e acabei não atendendo quando ela me ligou para me cobrar outra vez a atenção que deixei de lhe dar depois que comecei a conciliar a carreira de pilota da Estock Car e a de psicóloga graduada em Transtorno do Espectro Autista.
Meu peito aperta com a dor da perca, do luto e saudade de quem eu optei por manter longe de mim nos últimos anos porque olhar dia após dia pra cada um deles e lembrar que eu era uma intrusa entre eles, alguém que não merecia todo o amor que me davam, era demais pra mim, mas dos meus olhos nenhuma lágrima escorre porque tenho a leve a impressão de que esgotei o restinho de estoque que tinha a quase dez anos atrás, quando logo depois de enterrar meu padrinho Hércules, Derick decidiu se mudar definidamente para o Reino Unido para focar nos estudos e futura carreira de juiz que buscava para si e hoje exerce com maestria.
Eu fui obrigada a me despedir das duas pessoas que mais amava nessa vida na mesma noite. Aquilo doeu na alma e por doer, eu optei por fazer minha mente acreditar que assim como meu padrinho, Derick também havia morrido.
Mas ele não morreu e ter a ciência de que posso estar a alguns minutos de distância dele nesse momento, me faz travar dentro do carro por mais tempo do que eu gostaria.
- Minha princesa?
Heitor, meu melhor amigo que divide apartamento comigo desde que se separou do marido que é meu chefe de equipe, chama baixinho com a mão de unhas compridas subindo para os meus fios negros caídos por meus ombros. Acariciando com calma enquanto me analisa com as íris castanhas comuns que enfeitam seu rosto de pele morena, másculo, coberto pela barba por fazer tão escura quanto seus cabelos cortados curtinhos.
- Tudo bem se quiser ligar o carro e sair daqui, fugir como está acostumada... - seu tom aveludado não disfarça o quão errado ele considera a sua idéia. - Mas creio que não seria o certo a se fazer agora. Não é mesmo? O que a doutora Luara diria ao seu paciente, se ele estivesse nessa mesma situação?
Eu não consigo pensar como profissional quando os problemas são os meus e suspiro frustada, me xingando mentalmente ao fazer um bico com meus lábios ao tirar meus olhos dos do professor de ensino médio que toda semana eu me obrigo a consultar para impedir que ele enlouqueça por causa dos abençoados alunos que têm.
- Você tem quase trinta e cinco anos, Luara...
Permaneço calada quando ele sussurra tão frustado quanto eu.
- Já está na hora de parar de fugir e começar a enfrentar seus medos ou você vai viver assim pra sempre... De namoricos que nunca passam do primeiro encontro, de traumas que te impedem de acreditar que você é um mulherão da porra que merece todo o amor do mundo, inclusive da sua familia. Ou você acha o quê? Que eles te criaram forçados? Não, Lua... Eles te escolheram, independente do sangue que você carrega. Porque é tão difícil pra você entender isso?
Aperto as mãos sobre o volante do meu Camaro ZL1 e me inclino deslizando os dedos sobre o material com relevos emborrachados que servem para massagear minha palma quando apoio a testa sobre meus dorsos, me xingando de burra boca aberta que não conseguiu manter o próprio segredo escondido dele, que numa noite de bebedeira necessária para nós dois conseguiu arrancar de mim todos os segredos que eu guardava nessa vida e não me julgou, só me abraçou forte e acolhedor quando descobriu que fui estuprada por meu próprio pai e que era completamente apaixonada pelo meu irmão de criação que é alguns anos mais novo que eu.
- Em minha defesa... - começo, reunindo coragem para sair do carro porque ele está certo, já passou da hora de parar de fugir de Luan, Lorena e todo o restante da família por medo de sei lá o quê. - Como eu vou acreditar que sou um mulherão da porra sendo que todos os homens com quem me relaciono desaparecem logo após o primeiro encontro? Até o rapaz da igreja que estava falando em casamento e tudo mais...
Eu lembro de olhos fechados, me sentindo mal com isso porque é algo que me chateia, eu aos quase trinta e cinco anos não ter nenhum namorado para chamar de meu porque minha vida pessoal é uma piada de mal gosto. O que me salva é a vida profissional, ainda.
- Você é um mulherão da porra sim. Não se sinta menos do que você é por causa de homens que só queriam te comer... Inclusive, saudades. - franzo meu cenho, abrindo meus olhos e virando meu rosto na direção do seu quando ele corrige: - Não de te comer. Eca! De ser rebelde e dar pra outro que não seja o Rian. - ele menciona o ex marido que todos os sábados vai parar lá em casa, na sua cama provisória para ser mais específica.
- Eu não sou a única com problemas mal resolvidos aqui, não é mesmo? - ele bufa, olhando lá pra fora quando o som alto do escape de uma moto ecoa passando próximo ao carro em que estamos, me chamando atenção quando o estalo do retrovisor retrátil sendo empurrado contra o vidro da janela denuncia que o piloto da moto esportiva o dobra por implicância antes de se enfiar no espaço a minha frente. - Heitor...
Eu chamo trêmulamente, minha mão direita buscando a sua para apertar sem desviar meus olhos do piloto à minha frente. Usando calça e sapatos sociais com uma camiseta de manga comprida da mesma cor, ele desce da moto tirando o capacete, revelando ser quem eu ainda não estava pronta para ver.
Derick...
Ele não é mais o mesmo garoto de dez anos atrás, é um homem. Um homem alto, forte, com barba rala e postura que agora ele impõe enquanto desliza as mangas da sua camiseta para cima, revelando o braço direito cheio de veias marcadas sob sua pele fechada de tatuagens até o cotovelo.
Meu coração bate descontroladamente quando Heitor segura a minha mão e aperta chamando meu nome, mas é impossível desviar dele nesse momento. É impossível não lembrar da noite em que nos vimos pela última vez e ELE confessou que tinha deixado de me amar, que por esse motivo não tinha mais razões para ficar vindo ao Rio de Janeiro todos os anos só para me ver.
Eu me senti uma idiota porque até aquele momento eu me guardava pra que ele fosse o único homem a me tocar depois do maldito que eu não me arrependo de ter matado.
Eu fiz isso porque já o amava, já o queria tanto que doía no peito fingir que não sentia nada por ele, justo por ele que sempre me respeitou ao ponto de entender que na primeira e segunda vez que veio, eu ainda não estava pronta pra ele, mas que na terceira, na maldita última vez que nos encontramos sob circunstâncias semelhantes a de hoje, eu queria e estava pronta para que tomasse muito mais do que um beijo meu.
Mas ele não tomou. Ele optou por ir embora e me deixar quando eu mais precisava dele. Outra vez, porque Derick tem dessas...
- Amiga, ele tá vindo pra cá. Reage pelo amor de Deus!
Eu me sinto entrar em crise de pânico quando vejo ele fazendo a curva da frente do carro para vim até a minha porta. Todo alto e imponente com o capacete passado no braço e o boné preto com detalhes em cinza, que estava preso na alça da sua calça, subindo para a sua cabeça de fios castanhos claros levemente compridos.
- Oo, sua cara de anta! - eu me dobro pro lado quando recebo um beliscão na cintura e só então olho para o meu agressor. - Ele é bonito? É. É gostoso? Também. Mas ele te fez sofrer e você mesmo me disse:
- Derick faz parte do meu passado e é lá que ele vai ficar. - eu repito com ele e bufo, frustrada.
- Acontece que meu passado vive voltando pro meu presente.
Suspiro para me conformar com isso porque sei que só é assim pois em algum momento da minha vida eu deixei de lidar com meus problemas e comecei a fugir deles, fazendo com que se tornassem uma grande bola de caos que vai acabar me matando se eu não agir para a destruir da forma correta antes que isso aconteça.
- Vai ficar no carro por mais quantos minutos? - a voz rouca e potente ecoa adentrando minha audição pelo lado esquerdo no segundo em que minha porta é aberta, me fazendo virar o rosto para olhar, e no meu campo de visão o que se revela são os quadris bem encaixados na calça social com volume bem satisfatório na frente. Aí Deus! - Luara?
- Hum?
Engulo a saliva, minha respiração soando ofegante quando ele se inclina me observando por baixo da aba do boné preto que tem em sua cabeça, os olhos azuis esverdeados tão escuros quanto estavam na última vez que nos vimos se fixando nos meus quando sua língua desliza lentamente entre seus lábios rosados, deixando úmidos e ainda mais atraentes ao meu ver.
Isso é covardia.
- Quem é seu amigo e por que está sozinha com ele aqui dentro a mais de vinte minutos quando deveria estar lá dentro da igreja, fazendo companhia aos nossos pais?
- Eu acho que não te devo... - me calo, fazendo uma careta ao ter minha ficha caindo para outra questão. - Como sabe que estou aqui a todo esse tempo se chegou agora?
- Os seguranças que tomam conta de você pra mim, me avisaram. - ele se ergue depois de revelar de forma tranquila, como se fosse algo normal, e eu arregalo meus olhos, buscando os de Heitor que parece tão em choque quanto eu quando a voz rouca ecoa em tom autoritário ao mandar: - Vamos, saia daí. Agora.
Eu penso em dizer que não farei o que manda porque é ridículo que ele haja como se sempre tivesse moral e autoridade sobre mim, mas buscando uma rota de fuga com meu olhar, acabo o parando no loiro de fios grisalhos que acaba de sair da igreja vestido num terno preto caro, seu olhar focando pro céu quando uma das suas mãos se ergue para o rosto, como se estivesse lutando contra as lágrimas que ele mais do que ninguém deveria estar derramando agora. Afinal de contas, é a sua mãe que logo mais será enterrada.
- Luara, não me faça te tirar a força desse carro.
Eu bufo outra vez, me libertando do cinto porque não quero saber se ele realmente seria capaz disso nesse momento. No fundo eu sei que ele seria, mas também não tenho certeza porque ele mudou muito. A forma como falou comigo a pouco deixa isso bem claro.
O antigo Derick nunca me chamaria pelo nome e sim, pelo apelido.
- Se você não quiser entrar, pode me esperar naquela lanchonete ali da esquina. Tudo bem? - falo com Heitor, ouvindo o som do sapato social batendo com impaciência contra o asfalto quente ao meu lado.
- Eu vou fazer isso porque não sou íntimo da sua família. Só vim mesmo porque fiquei com medo de te deixar pegar a estrada sozinha. - eu aceno, deixando um sorriso agradecido enfeitar meus lábios quando me inclino deixando um selinho sobre os seus. - Amo você, princesa.
- Eu também amo você, Thor. - faço um bico, me sentindo grata por ter ele fazendo parte da minha vida.
E pensar que esse safado me odiava porque sentia ciúmes de como seu ex sempre me tratou no autódromo. Hoje ele finge odiar o ex e me ama porque o mundo não gira, ele capota.
- Quer saber... - o impaciente diz com a voz mais rouca que antes, se inclinando para dentro do carro novamente no segundo em que tiro a chave da ignição e coloco meus pés para fora.
Nosso movimento em conjunto é o suficiente para que acabemos por ficar cara a cara com o outro, tão perto que sou capaz de sentir seu hálito com cheiro de cigarro, que eu nem sabia que ele fumava, soprar quente contra meus lábios.
- Eu já estou saindo.
Sussurro, sentindo meu corpo amolecer quando sua mão direita se encaixa na minha cintura esquerda e aperta com força o suficiente para deixar a marca dos seus dedos ali enquanto seu maxilar trava diante dos meus olhos, que vagam por cada centímetro do seu rosto, passando por sua barba bem aparada com alguns fios loiros as enfeitando,
nariz fino e empinado que eu tenho certeza que ele operou porque não era assim, até parar nos seus olhos esverdeados que estão escuros e sem brilho nenhum. Tão vazios quanto os meus ficaram nos primeiros meses depois que ele foi embora definitivamente.
- Eu vou ir ali comer, tá? Podem ficar à vontade. Vocês já estão, né? - Heitor fala atrás de mim e eu engulo a saliva quando os olhos de Derick se erguem pra ele, que logo sai batendo a porta.
- Vamos, Luara Rodrigues... - Derick diz entre dentes, apertando minha cintura uma última vez antes de a soltar e se erguer me dando espaço para sair do carro. - Nosso pai precisa de nós dois agora.