Ele assente e sai, deixando-me sozinho. Depois de concluir os últimos detalhes, decido voltar para casa e descer ao porão. Ali é onde escondo os segredos mais sombrios, os erros que precisei corrigir e as dívidas que outros não puderam pagar. É aonde Summer se encontra.
Passo horas lá, perdido em pensamentos e decisões e a observando sem que ela perceba. O ambiente é escuro, abafado, o cheiro metálico de ferrugem impregnado no ar. Cada objeto, cada centímetro deste lugar, é um lembrete do tipo de homem que eu me tornei - ou sempre fui.
- "Ele é um carcereiro, assassino e perigoso..." - ouço sua voz baixa, mas carregada de angústia.
Ela está sozinha, e falando coisas a meu respeito ao vento, mesmo sem saber que estou aqui. Um sorriso maquiavélico se forma no meu rosto. A garota não sabe o que está fazendo.
- "...e eu estou com síndrome de estocolmo..."
Sem fazer barulho me aproximo dela.
- Então eu sou um carcereiro, assassino e perigoso? - falo com a voz fria, rompendo o silêncio.
Ela se sobressalta, seus olhos arregalados de pavor. A visão dela acuada, recuando contra a parede, me diverte.
- E você está com síndrome de estocolmo? - continuo, observando como ela reage.
- Eu estou falando com você, garota - rebato, a voz firme, autoritária.
Ela tenta disfarçar, mas vejo sua mente girando, procurando uma maneira de me atingir. Ela não entende que não há brechas em mim.
- Hades... seu nome é esse mesmo? Eu nunca conheci ninguém com esse nome.
Eu arqueio uma sobrancelha. Isso é o que ela tem a dizer?
- É mesmo?
- Sim, foi sua mãe que escolheu?
Sinto meu corpo endurecer ao ouvir a palavra "mãe". Não sei por que, mas aquela pergunta simples me irrita mais do que deveria.
- Minha mãe? - rio, mas sem humor. - Mia Béla, eu não tenho mãe. E, com certeza, não foi aquela filha de uma puta que escolheu meu nome.
Ela me encara, surpresa com a resposta. Há algo nos olhos dela, uma curiosidade inocente que me deixa desconfortável.
- Mas você tem alguém? - pergunta, fazendo um biquinho que claramente não me afeta.
Dou as costas para ela, pronto para sair. Essa conversa já foi longe demais.
- Você pode sair.
Ela hesita por um segundo, mas me segue.
- E também pode caminhar pela casa, mas não tente nada que vá se arrepender depois.
- Ainda estamos na Sicília? - sua voz soa mais firme agora.
- Você está aonde deveria estar, e isso basta.
- Aonde estamos? - ela pergunta de novo, dessa vez gritando.
Paro imediatamente e me viro, fazendo com que ela trombe em mim. Meu olhar a prende no lugar.
- Não grita comigo, cacete.
Ela recua, mas não desiste.
- Eu... eu só quero te pedir para ir ao cemitério ver minha mãe - ela diz, a voz quebrando enquanto as lágrimas começam a cair sem controle.
O choro dela mexe comigo de uma forma que não quero admitir. Há algo em sua vulnerabilidade que rasga a armadura que carrego. Desvio o olhar, tentando sufocar o peso daquela cena.
- Te leszel a megváltásom vagy kudarcom, Mia Béla? - murmuro em húngaro, uma das línguas que
domino, escolhendo propositalmente algo que ela não entenderá.
- O quê? Não entendi. Que idioma é esse? - ela pergunta, os olhos ainda brilhando com as lágrimas.
"Você será minha salvação ou meu fracasso, Minha Bela?" - penso, mas não respondo. Em vez disso, permaneço em silêncio, carregando a dúvida e o medo dessa verdade apenas comigo.
- Não te diz respeito e eu não seu babá, tenho coisas mais importantes para fazer.
Ela continua chorando, e por um instante, penso em ceder. Mas eu não posso. Não vou me deixar amolecer.
- Pare de chorar. Isso não vai mudar nada - digo, seco, antes de sair.
Enquanto desço as escadas, uma pontada de incômodo me atravessa. Algo nela me desestabiliza. Algo que
preciso destruir antes que cresça e se transforme em algo que não consigo controlar.
Sou Don Hades. Não me apaixono. Não sinto. Não tenho alma. Essa verdade é meu escudo, meu mantra. Com esse pensamento, pego o telefone e ligo para Marco, minha sombra mais eficiente.
- Descubra de quem ou do quê Summer mais gosta - ordeno, seco e direto desligando a chamada.
Marco não demora a retornar uma mensagem com a informação.
"Ela é reservada, senhor. Sem amigos próximos. Mas tem um cavalo. Parece que ela é apegada a ele."
Um sorriso frio e cruel surge em meu rosto enquanto digito a resposta: "Mate-o. E me traga o coração."
"Você é uma pessoa muito doente Gael" - me retorna, parecendo brincar com a sorte, só o ignoro.
Ele pode estar certo, sou uma pessoa doente. Estou deixando Summer entrar na minha mente.
Algumas horas depois, Marco retorna com o que pedi, envolto em um embrulho discreto. Não digo nada, apenas aceno, indicando que ele pode sair.
Subo até o quarto de Summer, carregando um prato de comida coberto. A cada passo, penso na mensagem que estou prestes a transmitir. Ela precisa entender que, no meu mundo, nada escapa ao meu controle.
Abro a porta sem bater. Ela está sentada na cama, os olhos perdidos em algum ponto da janela.
- Aqui está sua janta - anuncio, colocando o prato sobre a mesa de cabeceira.
Summer olha para mim com desconfiança, como sempre.
- O que é? - pergunta, franzindo o nariz.
Meu sorriso é lento, quase divertido. Levanto a tampa, revelando o que há no prato.
- O coração do Príncipe - digo, em um tom que mistura humor sombrio e desafio.
Os olhos dela se arregalam, e por um momento vejo o pânico surgir. Em um acesso de raiva, ela bate no prato, que cai no chão com um estrondo, espalhando seu conteúdo.
Sem hesitar, ela se levanta e começa a me bater no peito, os tapas desajeitados e impulsivos, como se estivesse tentando extravasar toda a dor e a raiva que sente. É quase engraçado, se não fosse tão patético. Seguro seus pulsos firmemente, obrigando-a a parar.
- Olhe para mim - ordeno, minha voz baixa e cortante. Ela tenta desviar o olhar, mas não deixo.
- Esse coração - continuo, aproximando meu rosto do dela - é um símbolo. Para te mostrar que, no meu mundo, eu faço o que quero. E você, Summer, não tem poder algum para impedir.
As lágrimas que começam a brotar nos olhos dela não me afetam. Pelo menos é o que eu quero acreditar.
Ela me encara, os olhos fervendo de ódio e dor, mas não diz nada. Apenas respira fundo, como se tentasse reunir forças para me desafiar mais uma vez.
- Você é a reencarnação de Lúcifer - sussurra, finalmente.
- E você é uma erva daninha... minha erva daninha. Nunca esqueça disso. - enfatizo a palavra "minha" e solto seus pulsos dando um passo para trás.
Saio do quarto sem olhar para trás, deixando-a ali, com os destroços de mais uma parte de sua alma.