Capítulo 6 Um pouco de humanidade

A noite foi a mais longa de sua vida. Kerem sentia a necessidade de fazê-la sua, mas se recriminava duramente, não podia acreditar que aquilo estivesse lhe acontecendo. Sempre fora capaz de controlar seus desejos.

Estudara em Istambul; todos os filhos dos chefes dos diferentes clãs faziam isso. Precisavam se preparar muito bem, caso um dia precisassem assumir o comando da própria família.

Na grande cidade, como a chamavam, precisou superar muitas tentações. Naquela época, estava comprometido e profundamente apaixonado.

Asya era uma mulher muito bonita. Desde que o deixara na frente do altar, sua vida se tornara um inferno. Ele parecia vê-la em cada mulher que tivesse algo semelhante a ela: os cabelos ondulados, os olhos castanhos claros. Não entendia por que o havia abandonado.

Ele a tratara como se fosse a flor mais preciosa e delicada do seu jardim. Kerem discordava de certas tradições da tribo, por isso, quando seu irmão morreu e foi informado que ocuparia o lugar dele, decidiu mudar algumas coisas.

Tentaria começar pelas leis rígidas, mas foi dois meses depois que Asya o abandonou, o que destruiu suas ilusões. Sentiu-se morto por dentro.

Na terra que fores... Esse ditado Zeynep ouvira muitas vezes. No seu caso, tentava segui-lo, mas não conseguia. Sentia que não tinha saída.

Chegara a pensar em fingir concordar com eles e fugir à primeira oportunidade, mas era-lhe impossível tolerá-los.

Sempre lutara pelos direitos das mulheres. Em seu país, participara de diversas campanhas. Agora, encontrava-se presa num lugar onde os direitos femininos eram praticamente inexistentes.

Para onde quer que olhasse, via como as mulheres eram acostumadas a ser submetidas da pior maneira. Para eles, era algo completamente normal, e as mulheres, sem outra opção, tinham que aceitar ser apenas objetos na vida desses homens.

Na manhã seguinte, ao acordar, a moça viu que seu cruel marido já não estava lá. Tomou um relaxante banho de água quente, realmente necessário.

Enquanto fechava os olhos, revivia as imagens de tudo que acontecera desde sua chegada a Diyat, quando encontrou Kerem no aeroporto. Nunca imaginara que ele seria o homem que transformaria sua vida num verdadeiro inferno.

Ainda estava dentro da banheira quando ouviu a porta do quarto se abrir.

-Zeynep?

Era a voz de Kerem. Ao escutá-lo, mergulhou a cabeça dentro da água. Ele a chamou novamente. Como não obteve resposta, abriu a porta do banheiro e a viu ali, submersa. Parou ao lado dela.

-O que você quer? Talvez para você a privacidade não seja importante, mas poderia me deixar em paz enquanto estou tomando banho? Disse ao perceber que ele havia entrado. Afortunadamente, havia bastante espuma na água para ocultar seu corpo.

-Te espero lá embaixo. Vamos sair. Precisa vestir a roupa que minha mãe comprou para você.

-Não, com você não vou a nenhum lugar. Prefiro esperar.

-Você tem vinte minutos. Se não fizer isso, subirei e a vestirei pessoalmente para te arrastar lá para baixo.

Kerem saiu imediatamente depois. Zeynep preferiu apressar-se para descer. Aquele homem estava louco e sabia que cumpriria a ameaça. A grande incógnita era: para onde ele queria que o acompanhasse?

Vestiu um dos vestidos que estavam ali, cor-de-rosa claro, com bordados florais, igual ao anterior que usara. Calçou outro par de botas.

Penteou com cuidado seus longos cabelos, depois cobriu-os com um lindo lenço também bordado. Maquiou-se levemente, destacando os olhos com delineado que os fazia parecer ainda maiores.

Ao descer, um dos guardas indicou que saísse para entrar no carro. Ao fazê-lo, viu que Kerem já estava dentro. Quando ela entrou, ele virou o rosto para o outro lado.

-Não sei para quê você quer que eu te acompanhe, já sabe que não nos suportamos mutuamente.

Kerem não respondeu, apenas a encarou com um olhar que dispensava palavras. Ela deveria se calar. Relutantemente, Zeynep ficou quieta. Aquele bruto seria capaz de cortar-lhe a língua.

O carro seguiu por ruas de paralelepípedos. Zeynep observava a paisagem: a terra era árida, o pó estava em todos os lugares, e as pequenas construções, na maioria, eram rústicas.

Imaginou que as únicas casas elegantes pertenceriam ao chefe e sua família.

Perguntou-se se algum dia voltaria a ver os campos verdes de seu país. Aquele povoado parecia tão sombrio.

Observou as mulheres nas ruas, a maioria com a cabeça coberta. Algumas também tinham o rosto velado. As mais modernas deixavam o rosto à mostra, mas todas usavam meias compridas que cobriam até a panturrilha.

Era um povo de tradições arraigadas, onde, aparentemente, as mulheres só serviam para cuidar dos homens e serem submetidas por eles. Não pôde evitar que algumas lágrimas escorressem por suas bochechas.

Kerem a observou por um momento. Zeynep ainda olhava pela janela. Ele não podia negar que era muito bonita, mas tão difícil de domar quanto uma égua selvagem.

O carro parou diante de uma construção antiga, nos arredores do povoado.

-O que estamos fazendo aqui? Zeynep sentiu medo naquele instante. Acaso Kerem se livraria dela ali?

-Desça -ordenou. Imediatamente, saiu do carro.

Zeynep obedeceu. Não queria contrariá-lo. Talvez assim ele tivesse pena dela. Mostrar-se-ia dócil, ao menos naquele momento.

-Siga-me. Ela o fez, caminhando atrás dele devagar.

Ao entrarem no local, Zeynep viu vários crianças reunidas num pequeno pátio. Estavam vestidas de forma humilde e saudaram Kerem com alegria.

Ele conversou com algumas das crianças e com os que pareciam ser professores. Depois, pediu que Zeynep o acompanhasse na visita à pequena escola.

-Venha comigo. Quero que preste atenção em cada detalhe da construção e instalações. Como minha esposa, você tem deveres, e um deles será cuidar da reforma deste lugar e da construção das novas salas de aula.

O rosto de Zeynep iluminou-se. Afinal, aquele homem não era tão primitivo quanto imaginava. Havia um pouco de humanidade nele.

Kerem entregou-lhe um lápis e um caderno para anotar o que considerasse necessário para melhorar o ambiente das crianças.

-Agora, como chefe, posso começar a fazer essas coisas. Na verdade, ninguém se preocupa com a educação das crianças do povoado. A maioria dos meninos é mandada para estudar fora, mas as meninas devem ficar, e não têm oportunidade de estudar. Como você viu, algumas delas já vêm às aulas, mas a maioria tem os pais que não autorizaram sua presença aqui.

-Mas você é o chefe. Poderia obrigá-los.

-Não é tão fácil. Talvez eu conseguisse fazê-los mandar as meninas aqui, mas correria o risco de que os pais ou irmãos decidissem desaparecê-las. Seriam uma vergonha para a família por não seguir as tradições antigas.

Zeynep horrorizou-se ao ouvir isso.

-Eles não concordam que sejam professores quem dê as aulas. Não há mulheres preparadas aqui para ensinar, e trazer uma da cidade não é viável. Nunca aceitariam.

-Seria possível construir uma escola em outro lugar, apenas para as meninas?

-Seria, mas continuaríamos com o mesmo problema: quem daria as aulas para elas?

-Tenho formação suficiente para isso. Podem pedir à minha tia que envie meus documentos, assim os pais verão que sou qualificada.

-Você está disposta a passar horas dando aulas às meninas?

-Claro que sim. As meninas do povoado merecem chance de se preparar, aprender e ter um futuro melhor.

-Sabe que a maioria só aprenderá o que você ensinar. Seus pais não permitirão que saiam do povoado para continuar os estudos.

-Por algo se começa.

A proposta agradou Kerem. Pelo menos sua esposa estava disposta a ajudar, o que seria bem visto pelos moradores. Embora soubesse que sua mãe seria um grande problema, por ter tradições arraigadas. Que sua nora trabalhasse como professora não seria do agrado dela.

Duas horas depois, Zeynep tinha a lista do necessário, fizera um esquema das reformas possíveis e estava animada com a ideia de ser professora e ajudar todas aquelas meninas. Além disso, seria a oportunidade perfeita para sair daquela casa e se afastar da sogra.

Voltaram para casa em silêncio, cada um mergulhado em seus pensamentos. Kerem sabia que teria uma grande discussão com sua mãe.

Seria melhor esperar até que a escola estivesse pronta para contar a ela. Procuraria uma forma de pedir os documentos à tia sem que seus pais descobrissem.

Ao chegarem em casa, Kerem desceu primeiro e estendeu a mão para ajudar a moça. Dessa vez, fez isso gentilmente, e ela aceitou. Era claro que estavam em meio a uma trégua.

Kerem gostava de vê-la planejando o futuro no povoado. Isso significava que ela estava se adaptando e não pensava em fugir dali.

            
            

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