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O som suave do piano preencheu o salão dourado da mansão Carvalho, como se cada nota estivesse pintando as paredes com luz. O sol da manhã entrava pelas grandes janelas de vidro, refletindo nos cabelos castanho-dourados de Annabeth, que tocava com os olhos fechados e o coração aberto.
Ela era uma melodia viva.
Vestida em um delicado vestido azul-claro, com rendas feitas à mão por sua falecida avó, Annabeth parecia saída de um conto. Aos 19 anos, já era conhecida nacionalmente como a pianista prodígio - a mais jovem a conquistar três prêmios em competições estaduais consecutivas. Mas, para os Carvalho, ela era mais do que um talento: era a Princesa da Casa.
- Essa música é sua, mamãe... - sussurrou ela, quando terminou de tocar. Sua mãe, Clarice, a aplaudia emocionada da poltrona próxima.
- Você me faz chorar, minha menina... - disse Clarice, sorrindo com ternura. - Você tem o dom de transformar dor em beleza.
Annabeth levantou-se e caminhou até a mãe. Abraçaram-se em silêncio, um abraço que parecia suspender o tempo.
Naquela manhã de primavera, tudo estava em harmonia.
Do lado de fora, os irmãos de Annabeth treinavam no campo da propriedade. John, o mais velho, ex-militar e atual herdeiro dos negócios do pai, organizava os treinos como um general carinhoso. Noah, o segundo, que sonhava em ser piloto, ria alto enquanto derrubava Anthony, o mais novo.
E lá estava ele, Anthony, gêmeo de Annabeth, caído na grama, bufando de indignação.
- Isso foi falta, Noah! - gritou, tirando a camiseta suada. - Nem no treino você sabe jogar limpo!
Noah apenas gargalhou, jogando a bola no alto.
- Foi técnica, maninho. Aprende com o mestre.
- Mestre do sarcasmo, só se for. - John apareceu, dando um tapa carinhoso na cabeça de ambos.
Quando Annabeth apareceu na varanda, os três pararam.
- Prontinha pra derrubar corações no festival de música? - brincou Noah, jogando um beijo no ar.
- Se vocês não estragarem minha concentração com esse cheiro de suor... talvez! - ela disse com um sorriso travesso.
Anthony correu até a varanda, subindo os degraus dois de cada vez.
- Ei, princesa. Quer ir tomar um sorvete comigo mais tarde?
Annabeth sorriu, tocando no colar com um pingente em formato de lótus que ele havia lhe dado.
- Só se você pagar. E não tentar roubar o meu como da última vez.
Anthony levou a mão ao peito, fingindo indignação.
- Jamais roubaria um doce da minha gêmea favorita.
- Eu sou sua única gêmea, Tony.
- Exatamente.
Clarice observava tudo com um brilho nos olhos. Roberto Carvalho, o patriarca, chegou logo depois, direto de uma reunião, afrouxando a gravata.
- Que algazarra boa de ouvir... - disse, abraçando a esposa por trás. - E como está minha princesa?
- Vitoriosa. Como sempre. - respondeu Clarice.
Roberto se aproximou da filha.
- Filha, não se esqueça de que hoje temos um jantar com o Ministro da Cultura. Ele quer conhecê-la pessoalmente antes da apresentação da próxima semana.
- Sim, senhor. - disse Annabeth, educada. Sempre obediente, sempre perfeita.
Mas Clarice a olhou com olhos mais atentos.
- Você pode dizer "não", querida, se estiver cansada. Nós entenderemos.
Annabeth hesitou. Mas, como sempre, sorriu.
- Não estou cansada. Vai ser uma honra.
E então todos voltaram à rotina da casa, entre risos e promessas de tardes felizes.
Annabeth fechou os olhos por um instante, sentindo o vento brincar com seus cabelos. Tudo parecia tão eterno, tão certo...
À noite, a mansão Carvalho transformou-se. O salão principal foi decorado com arranjos florais brancos e dourados. Os empregados circulavam com discrição, enquanto o aroma de lavanda e especiarias preenchia o ar. O jantar com o Ministro da Cultura era uma das ocasiões mais importantes do ano, e Roberto fazia questão de impressionar.
Annabeth desceu as escadas com a leveza de uma pluma. Seu vestido longo em tom champanhe, bordado com pequenas lantejoulas em forma de lótus, realçava sua delicadeza. Os cabelos estavam presos em um coque clássico, e sua maquiagem era sutil, apenas o suficiente para destacar os olhos cor de âmbar herdados da mãe.
Quando ela surgiu, os convidados se viraram como se o tempo tivesse parado.
- Senhorita Carvalho - disse o Ministro ao vê-la. - Finalmente conheço a lenda viva.
Ela se curvou levemente, sem perder o sorriso calmo.
- O senhor é gentil demais, Ministro. A lenda é apenas uma moça apaixonada por música, tentando honrar o legado de sua família.
A resposta encantou a todos.
- Já vi políticos experientes suarem diante desse homem - murmurou Noah a Anthony, do outro lado do salão. - E ela? Parece que nasceu nesse palco.
- Porque nasceu. - respondeu Anthony, olhando para a irmã com um brilho orgulhoso nos olhos.
Durante o jantar, Annabeth sentou-se entre o Ministro e o Embaixador da Suíça, ambos fascinados por sua eloquência. Falava com calma, mas com firmeza, sobre a importância de tornar a música clássica acessível para crianças em comunidades carentes. Sua voz transmitia empatia e convicção, como se sua juventude não fosse obstáculo, mas força.
- Sua filha é extraordinária, senhor Carvalho - comentou o Ministro com um sorriso. - Ela carrega o tipo de graça e propósito que raramente se vê nos dias de hoje.
Roberto, inchado de orgulho, apenas assentiu.
- Ela é a luz da nossa família. E o futuro da cultura nacional.
Annabeth sorriu discretamente, mas por dentro, seu peito se encolheu. "E o futuro da cultura nacional", pensou. Não "minha filha", não "minha pequena Beth". Apenas a projeção de um ideal.
Ainda assim, ela manteve a postura.
Ao final do jantar, pediram que ela tocasse uma peça.
Ela escolheu Clair de Lune.
Sentou-se ao piano com as mãos quase flutuando sobre as teclas. Assim que começou a tocar, o mundo pareceu desaparecer. Cada nota era emoção, cada pausa, uma respiração profunda de alguém que conhecia a dor e ainda assim insistia na beleza.
Algumas senhoras choraram baixinho. O Ministro cerrou os olhos, tomado pela melodia. Roberto olhava com admiração. Mas quem realmente via a alma de Annabeth naquele momento... era Anthony.
Ele sabia que por trás de cada nota havia uma verdade que ninguém mais enxergava: o desejo de ser amada por quem ela realmente era, não apenas pelo que representava.
Quando a última nota ressoou, o salão ficou em silêncio por um segundo inteiro. E então, uma salva de palmas - longa, calorosa, sincera - preencheu o ambiente.
Annabeth curvou-se com elegância. Seus olhos brilharam, mas não era vaidade. Era alívio. Ela havia feito o que precisava. Mais uma vez.
O salão agora estava quase vazio. Os convidados já tinham partido, os garçons recolhiam discretamente as taças de cristal e os arranjos florais já não exalavam o mesmo perfume de horas atrás.
Annabeth andava pelos corredores em silêncio, ainda com os saltos delicados nos pés. A cada passo, sentia o peso do mundo descer sobre seus ombros. Era sempre assim. Quando as cortinas se fechavam e os sorrisos se desmanchavam, só restava o vazio da performance cumprida.
- Você está andando muito rápido - disse uma voz familiar atrás dela.
Ela parou e virou-se com um pequeno sorriso. Anthony estava ali, com o paletó desabotoado e a gravata frouxa. Os cabelos castanhos, idênticos aos dela, estavam um pouco bagunçados.
- Não estou com pressa - disse ela.
- Está sim. Quando anda assim, é porque está tentando fugir de alguma coisa. - Ele parou a poucos passos e a encarou com aquele olhar que desarmava qualquer muralha que ela tentasse construir. - Do que está fugindo hoje?
Annabeth suspirou. A máscara caiu um pouco.
- De mim mesma, talvez.
Anthony não disse nada por um momento. Caminhou até ela e estendeu a mão.
- Vem comigo.
Ela hesitou, mas aceitou. Eles atravessaram os corredores da mansão, agora mergulhados numa penumbra serena, até chegarem ao jardim interno, onde um pequeno piano branco repousava sob uma pérgola coberta por flores de lótus em miniatura - plantadas por ela quando tinha apenas dez anos.
- Lembra disso? - perguntou ele.
Annabeth sorriu, tocando levemente uma das flores.
- Eu disse que ia fazer florescer lótus mesmo fora d'água. E você riu.
- E ainda rio. - Ele se sentou no banco do piano e bateu no espaço ao lado. - Senta. Só um minuto, sem cobranças, sem plateia.
Ela se sentou, tirando os sapatos com alívio.
- Quer que eu toque? - perguntou, encarando as teclas com ternura.
- Quero que você seja você. Só isso.
Annabeth hesitou por um instante, depois seus dedos encontraram as teclas, tocando uma melodia suave, inventada na hora. Anthony se recostou, os olhos fechados, deixando que o som envolvesse os dois.
- Você sabe que ninguém no mundo toca como você, né? - disse ele, abrindo os olhos devagar. - Mas o que mais me impressiona não é a música... é a forma como você sente. Como se cada nota fosse um pedaço do seu coração.
- Você é o único que enxerga isso.
- Porque eu sou parte do seu coração.
Ela parou de tocar. O silêncio pairou como um segredo entre eles.
- Lembra quando éramos crianças e você se machucou no parquinho? Eu estava na escola, mas do nada comecei a chorar. A professora ligou pra casa, achando que era birra.
- Eu lembro - sussurrou ela. - Mamãe ficou assustada porque eu caí e você chorou junto. Ela disse que nunca viu laço igual.
- Esse laço ainda existe, Beth. Mesmo quando tudo ao redor tenta quebrar. Mesmo quando nosso pai se esquece de te olhar com amor, quando os outros agem como se você fosse invisível... eu te vejo.
Os olhos dela se encheram d'água.
- Você sempre me vê.
Anthony segurou a mão dela com cuidado, entrelaçando os dedos como se aquilo fosse suficiente para segurá-la inteira.
- E nunca vou deixar de ver. Nunca.
Naquela noite, o jardim testemunhou o que nenhuma sala luxuosa jamais conseguiria capturar: o amor mais puro entre dois irmãos que o destino entrelaçou não apenas pelo sangue, mas pela alma.
O luar iluminava as flores de lótus como pequenas centelhas de renascimento.
E Annabeth, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que ainda podia florescer.