/0/14644/coverbig.jpg?v=a7cfd841fdde59a4fa8a574d1c27bc0b)
O carro preto cortava a estrada estreita, serpenteando entre montes cobertos de vegetação rasteira, onde o verde parecia desbotado pelo tempo e pelo sal. O mar era uma presença constante ao longe - uma mancha azul que se estendia até onde a vista alcançava, pontilhada por pequenas embarcações ancoradas e gaivotas preguiçosas pairando no céu.
Helena mantinha as mãos firmes no volante. Os olhos, por trás dos óculos escuros, estavam marcados por noites mal dormidas. Seu cabelo castanho, preso de qualquer jeito num coque, balançava a cada solavanco da estrada esburacada. A casa... fazia anos que ela não punha os pés ali. Desde o enterro da avó, quando ela ainda era uma adolescente confusa, lidando com um luto precoce e palavras não ditas.
A vila de Areia Branca surgiu como um sussurro. Pequenas casas de fachada simples, algumas desbotadas, outras renovadas com cores vivas que contrastavam com o céu cinzento daquela manhã. Poucos rostos nas janelas, menos ainda nas calçadas. Uma mulher com lenço na cabeça varria o chão com movimentos circulares, como se desenhasse símbolos secretos na poeira. Crianças jogavam bolinhas de gude perto da igreja, que se erguia como um sentinela solene no centro do povoado.
O portão da casa rangeu ao ser empurrado. Helena parou por um momento, encarando a construção diante dela. A antiga casa dos avós. Enorme para os padrões da vila, mas agora tomada por trepadeiras e manchas escuras na pintura. Um dos janelões frontais estava rachado. O vento do mar trazia consigo o cheiro de lembranças esquecidas.
Ao cruzar o limiar da porta, Helena foi recebida por um silêncio espesso. O som das ondas se ouvia ao fundo, mas ali dentro, tudo era imóvel. Ainda havia móveis cobertos por lençóis brancos, como fantasmas adormecidos. Um espelho oval, manchado pelo tempo, refletia apenas vultos. E havia algo mais... um cheiro leve de mofo misturado a algo indefinível - uma fragrância doce, quase floral, que não pertencia a nenhum produto de limpeza ou madeira velha.
- Aqui vamos nós - murmurou, soltando a mala no chão.
Ao explorar os cômodos, Helena encontrou um antigo diário. Era da avó, ou talvez da tia-avó. A caligrafia delicada, de tinta azul, falava de noites insones, vozes na praia, e uma frase repetida várias vezes ao longo das páginas: "Eles voltam quando o vento sopra do norte."
Um arrepio percorreu sua espinha.
Quando saiu para buscar as chaves com o zelador indicado pelo corretor, o céu já ameaçava chuva. Na padaria, todos os olhares se voltaram para ela - curiosos, desconfiados, alguns até assustados. Mas foi ao sair que ela ouviu, pela primeira vez, a voz dele.
- Voltar nunca é uma escolha. É um chamado - disse o homem de barba cerrada e olhos escuros, encostado num dos pilares da construção.
Ela o encarou por instantes. O rosto dele era familiar, mas ela não conseguiu dizer por quê.
- E você? Foi chamado? - devolveu ela, tentando soar indiferente.
- Eu nunca saí.
O nome dele era Joaquim. E aquele breve encontro marcaria o início de uma jornada que Helena jamais poderia prever.