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Helena decidiu que precisava de ferramentas. Mais precisamente: martelo, chave de fenda e alguma esperança em spray para limpar décadas de abandono. A ferramentaria da vila ficava no centro, ao lado do açougue e de uma barbearia que parecia ter parado em 1983 - o que não era tão improvável, considerando o corte de cabelo do senhor que lia jornal na porta.
Quando entrou na loja, o sino da porta tilintou como nos filmes, e ela imediatamente sentiu o cheiro inconfundível de madeira, graxa e... peixe seco?
- Posso ajudar? - a voz grave veio do fundo.
Joaquim surgiu por trás de uma estante com caixas empilhadas, segurando uma vassoura. Ela olhou para o objeto, depois para ele.
- Está me perseguindo ou só trocando de profissão?
Ele sorriu de canto, os olhos brilhando com algo que poderia ser ironia ou só o reflexo da luz.
- Faço de tudo um pouco. Menos prometer o que não posso cumprir. A vila é pequena, e os mistérios grandes. Precisa de ajuda com qual dos dois?
- Por enquanto, só preciso de uma chave de fenda. Mas anoto seu nome para os mistérios.
Ele pegou uma caixa de ferramentas simples e a entregou. Suas mãos eram grandes, com marcas de trabalho, mas havia delicadeza no gesto - algo que não combinava com a postura reservada dele.
- A casa... ouvi dizer que era da família Duarte. A da beira-mar.
- Era dos meus avós. Estou tentando trazê-la de volta à vida. Embora ache que ela esteja resistindo bravamente.
- Casas assim não morrem - ele disse, encostando-se no balcão. - Elas apenas dormem... Às vezes, sonham. E às vezes, sussurram.
- Você sempre fala como se tivesse saído de um livro? Ou é o efeito colateral da maresia?
Ele riu. De verdade, pela primeira vez. Um som grave, curto, que pareceu ecoar por mais tempo do que deveria.
- Eu cresci ouvindo as histórias da vila. Às vezes, elas falam mais do que os moradores.
- E você? Tem alguma história?
Ele hesitou por um segundo, e então respondeu com simplicidade:
- Talvez uma ou duas. Mas as boas, essas preferem ser contadas aos poucos.
Ela não insistiu. Apenas pagou, pegou a sacola e, antes de sair, lançou-lhe um olhar breve.
- Se um dia quiser contar uma delas, tenho duas cadeiras e café fraco em casa. É o que posso oferecer no momento.
- Café fraco é melhor do que silêncio forte - respondeu ele, enigmático como sempre.
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Naquela noite, a chuva voltou, mas de forma suave. O tipo de chuva que acaricia o telhado e embala lembranças. Helena, vestida com uma blusa velha e calça de moletom, tentava consertar um armário quando ouviu batidas leves na porta da frente.
Joaquim, encharcado, segurava um embrulho de papel.
- Trouxe pão fresco. E, acredite ou não, queijo artesanal. Presente da dona Mariana, a que vive dizendo que você tem "olhos de quem vê demais".
- Que poético. E preocupante.
- Bem-vinda a Areia Branca.
Sentaram-se na sala, rodeados de caixas e pilhas de livros velhos. O café estava, de fato, fraco - Helena havia medido a água com otimismo e o pó com preguiça -, mas eles beberam mesmo assim. A conversa fluiu, ora séria, ora leve.
- Você falou das histórias da vila... - ela começou, mexendo a xícara. - O que sabe sobre os desaparecidos?
Ele demorou a responder.
- Sei que ninguém nunca mais foi o mesmo depois daquilo. Três jovens. Sumiram como se tivessem sido levados pelo próprio mar. Nenhum sinal. Nem um sapato molhado. Só a ausência. E um silêncio que se espalhou como ferrugem.
- E o pescador? Vidal?
- Ele foi encontrado morto dois dias depois. Em terra firme. Os olhos abertos, como se tivesse visto algo que não devia.
- E você acredita...?
- Que há mais entre céu e mar do que se imagina? Sim. Acreditar, às vezes, é só uma forma de sobrevivência por aqui.
Ela olhou para ele com mais atenção. Havia uma tristeza nos olhos de Joaquim, profunda e silenciosa, como um poço escondido num jardim abandonado.
- Você os conhecia? - ela arriscou.
Ele fitou a xícara por alguns segundos.
- Um deles era meu irmão.
Helena sentiu o estômago revirar. A informação caiu como uma âncora no meio da sala. E, por um instante, nem o som da chuva ousou interromper aquele silêncio.
- Desculpe. Eu não...
- Não tem o que desculpar. O passado não some. Ele apenas muda de forma. Às vezes, aparece como sonho. Outras, como gente nova chegando à vila com caixas, perguntas... e café fraco.
Ela riu, aliviando a tensão.
- Prometo melhorar a receita.
- Só se prometer não abrir caixas com frases esquisitas sem mim por perto.
Helena arqueou as sobrancelhas.
- Como você...?
- Vila pequena, lembra?
Naquela noite, quando ele foi embora, deixou para trás mais do que um cheiro de pão fresco e mar. Deixou perguntas. Curiosidade. E uma vaga sensação de que, pela primeira vez em muito tempo, ela não estava completamente sozinha.
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A caixa continuava no mesmo lugar, no quarto dos fundos. Fechada. Esperando. Mas agora, parecia... mais próxima.
Como se soubesse que, cedo ou tarde, seria aberta.