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A tempestade chegou antes da noite. Ventos fortes varreram as ruas como se quisessem apagar qualquer vestígio da presença de Helena na vila. As telhas da casa antiga estalavam em protesto, como ossos velhos que se recusam a permanecer no lugar. A energia caiu por volta das 18h, e com ela, todas as ilusões românticas de Helena sobre sua "reconexão com o passado".
- Claro. Porque nada diz 'recomeço' como tomar banho à luz de velas numa casa possivelmente mal-assombrada - resmungou, equilibrando uma vela tremeluzente numa das mãos e um rolo de papel higiênico na outra.
Instalada no quarto dos fundos - o único onde a janela ainda fechava por completo - Helena começou a reorganizar o espaço. Os lençóis estavam rígidos como papiros, e os travesseiros tinham cheiro de eternidade. Mas havia uma estranha sensação de acolhimento naquela decadência. Como se a casa, mesmo envelhecida, ainda se lembrasse dela.
Durante a limpeza, encontrou uma caixa de madeira trancada no fundo do armário. Tinha uma tranca enferrujada e uma frase gravada em letras quase apagadas: "O que foi esquecido aguarda ser lembrado." Obviamente, isso não ajudava em nada seu desejo por uma noite tranquila.
- Porque nada diz "relaxe e aproveite sua estadia" como frases enigmáticas em objetos trancados - murmurou, jogando a caixa de lado. - Obrigada, vó.
Na manhã seguinte, foi acordada por um som que não ouvia desde a infância: o canto rouco das maritacas e o barulho insistente da vassoura de palha sendo arrastada na varanda. Ao abrir a porta, deu de cara com uma senhora baixa, envergada, usando um vestido de estampa de bananas e um chinelo gasto.
- Acordar cedo é bom pra pele - disse a mulher, sem se apresentar. - E pra não ser pega de surpresa por certos... moradores.
- Moradores? - Helena coçou a cabeça, ainda tentando se situar no tempo e espaço.
- Espíritos, minha filha. Ou acha que essa casa ficou vazia por vinte anos porque o povo da vila tem alergia a areia?
Helena sorriu, sem saber se ria da ideia ou da convicção da senhora. Mas havia algo nela - um brilho nos olhos, talvez - que deixava claro que não se tratava de brincadeira.
- A senhora é a...?
- Maria do Socorro. Mas me chamam de Socorro mesmo. Porque quando chamam "Maria", metade da vila responde. Eu cuido da igreja, da padaria e das almas penadas que ainda não entenderam que já passaram do prazo de validade.
Helena soltou uma risada curta, vencida.
- Quer um café? - perguntou.
- Se tiver sem açúcar e com bolacha de maizena, aceito. Se não tiver, aceito também. Reclamo depois.
Enquanto o café passava, Socorro falava sobre a vila, como quem desfia um novelo velho, cheio de nós, pausas e pedaços que se perderam. Falou sobre o desaparecimento dos jovens - algo que Helena mal se lembrava - e de um pescador chamado Vidal, que dizia ouvir vozes vindo das pedras quando o mar estava calmo demais.
- E ninguém achou estranho isso?
- Meu bem, aqui as pessoas acham estranho quem não fala com as pedras. É mais fácil você ser chamada de doida por não ver coisa nenhuma.
- Faz sentido. Acho.
Antes de ir embora, Socorro virou-se para Helena com um olhar mais sério:
- Se você for abrir a caixa, que seja de dia. De preferência, com uma bíblia por perto. Ou pelo menos um gato.
- Um gato?
- Eles enxergam coisa. E se correrem, é porque você deveria ter corrido antes.
Helena ficou olhando a figura da senhora sumir pela trilha de areia, sacudindo a vassoura como um cetro de feiticeira. Tomou o último gole de café já frio e olhou novamente para a caixa no canto do quarto.
No fundo, tinha quase certeza de que não seria ela a abrir aquela caixa. Ela sabia - ou achava que sabia - que havia coisas que só aparecem para quem insiste em ver demais.
Mas Areia Branca não parecia um lugar que respeitava as vontades alheias.