Capítulo 6 ✝ Liberdade Disfarçada de Escolha

"Às vezes, o que parece liberdade é só outra forma bonita de estar presa."

As luzes da casa de Beatriz estavam baixas, só a luminária da sala acesa. A noite avançava, mas nós três ainda estávamos ali, largadas nos sofás como se o mundo tivesse parado. Eu não conseguia parar de pensar no que tinha acontecido nas últimas 48 horas. E ao que tudo indicava, minhas amigas também não.

- Você vai começar a falar ou a gente vai ter que arrancar à força? - Sofia cruza os braços, o olhar firme, enquanto Beatriz mordia uma almofada como se ela fosse impedir uma explosão interna.

- Ai, meninas... é meio complicado. - tento ganhar tempo, fingindo um cansaço que na verdade era só confusão mental.

- Complicado? Helena, um cara aparece na sua casa, você vai embora do culto no meio da pregação com a cara de quem viu um fantasma e depois solta no meio do recreio que recebeu um pedido de casamento?! Você nos deve explicações! - Beatriz desabafa, os olhos arregalados.

Respiro fundo.

Eu não posso contar a verdade. Ainda não.

O contrato, o pedido absurdo, o tom frio e calculado da proposta... se eu falasse, elas iam surtar. Ou pior: tentar me convencer a dizer "não".

E o problema é que...

Eu não queria dizer "não".

- Tá bom... - olho para as duas e improviso. - É um propósito.

- Como assim? - Beatriz pergunta, franzindo o cenho.

- Um propósito. Espiritual. Eu e Dylan estamos fazendo isso por um tempo. Tipo, orar juntos. Conversar. Ver se... sei lá, é da vontade de Deus.

Silêncio. Absoluto.

- Helena... você acha que eu nasci ontem? - Sofia diz, quase sussurrando, como se estivesse com medo de que a verdade fugisse pela janela.

- Não tô mentindo. - minto, olhando para a ponta do cobertor.

- Isso tem a ver com aquele negócio que você sempre fala de abrir uma cafeteria-livraria? - Beatriz pergunta, e por um segundo minha fachada vacila.

Eu me calo.

Porque ali, naquela pergunta inocente, estava o centro do furacão.

Desde pequena, eu sempre sonhei em ter meu cantinho. Um lugar com cheiro de café fresco e páginas de livro antigo. Um espaço onde pessoas pudessem entrar, pedir um cappuccino e sair com uma história nova pra viver.

Mas sonhos assim custam. E minha realidade...

É apertada, como a casa onde moro, como as contas que às vezes minha mãe tenta esconder que não consegue pagar.

Dylan sabe disso.

Ele sabe.

E mesmo que o pedido dele tenha sido frio, objetivo, quase como uma transação...

Uma parte de mim viu ali a chance. A brecha. O empurrão.

A independência.

Eu encaro Beatriz, depois Sofia. Forço um sorriso.

- Eu só preciso entender o que Deus quer com isso tudo, sabe? Só isso.

Elas não acreditam. Mas fingem acreditar. Porque me amam.

E por enquanto, isso basta.

- Vou te levar pra casa, Lena! - avisa Sofia, pegando as chaves do carro do pai, que finalmente tinha deixado ela dirigir. Quem dera ele tivesse emprestado no dia do show... assim a gente não teria voltado pra casa andando a pé naquela noite.

Ela me lançou mais um daqueles olhares cheios de desconfiança, mas não disse nada.

Nos despedimos de Beatriz, que ficou na porta com cara de quem ainda queria saber o resto da fofoca, e saímos.

Sofia destravou o carro e entramos. Ficamos em silêncio por alguns segundos enquanto ela ajeitava a bolsa no banco, mexia em uns papéis e ligava o carro.

Então, ela colocou uma música. Uma bem familiar.

"Casinha de Sapê."

Meu peito apertou. O som daquela canção me levou direto pra sala da casa da minha avó, onde meu avô costumava assobiar essa música enquanto tomava café e lia a Bíblia. Eu era só uma garotinha, tentando acompanhar a melodia e entendendo quase nada da letra. Mas o cheiro do café, o som do ventilador velho, o calor do colo dele... tudo voltou com força.

Sofia me olhou pelo canto do olho e sorriu de leve. Apesar do jeitão durona, ela era sensível. E romântica. Tinha um gosto musical tão eclético quanto o humor da nossa professora de química.

- Helena... - chamou, séria. Eu virei o rosto pra ela. - O Dylan é meu primo.

- O quê?! - arregalei os olhos, surpresa. - Você tá brincando?

- Primo distante - explicou, dando de ombros. - Mas a gente sempre foi meio próximos. Crescemos indo nas mesmas reuniões de família, sabe? Aqueles almoços eternos de domingo...

Eu fiquei em silêncio. Aquilo me pegou de jeito.

- E... - ela hesitou, suspirou. - Eu tenho que te dizer isso, porque te considero. Não acho que o Dylan seja o cara certo pra você.

Engoli seco. Ela ainda estava de olho na estrada, mas dava pra ver que pensava bem antes de cada palavra.

- Ele teve uma fase... bem complicada. Se envolvia com muitas garotas, sumia, voltava... uma vibe meio dramática. E, olha, tem uma que é... insuportável. Mas deixa pra lá.

- Insuportável? - perguntei, tentando disfarçar o incômodo.

- Não importa agora - cortou. - Só tô dizendo porque, bom... você é minha amiga. E ele pode ser meu primo, mas isso não muda o fato de que ele nunca foi muito confiável no amor.

Fiquei quieta. As palavras dela batiam diferente porque vinham com cuidado. E um toque de proteção.

- Tá tudo bem se você não quiser me contar o que tá acontecendo, Lena - ela disse, agora mais suave. - Mas pensa bem, tá? Não se mete em algo que vai te prender em vez de te libertar.

Aquela frase me fisgou.

Porque era exatamente isso que eu queria: liberdade.

Mas o contrato... a proposta... o Dylan...

Nada daquilo parecia liberdade.

Mesmo assim, não respondi.

Apenas encostei a testa no vidro da janela e deixei a música tocar.

                         

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