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O Indomável - Capítulo 1: A Sombra do Passado
Vila Nova, 24 anos atrás
A noite caía pesada sobre Vila Nova, uma cidade pulsante que nunca dormia, mas que escondia segredos nas suas vielas escuras e nos arranha-céus reluzentes. O ar estava úmido, carregado com o cheiro de asfalto quente e o rumor distante de sirenes. No bairro operário de São Lázaro, as luzes dos postes piscavam, como se hesitassem em iluminar as verdades que se escondiam nas sombras. Era ali, em uma rua estreita de casas térreas, que José e Clara tentavam construir uma vida simples para seu filho de seis meses, Alaz.
Naquela noite, o bar "Estrela do Norte" estava mais agitado que o comum. Mesas de madeira rangiam sob o peso de copos cheios, risadas ecoavam entre os habitués, e o rádio tocava uma música sertaneja antiga, quase abafada pelo burburinho. José, um homem de trinta anos, magro, com olhos fundos e uma barba rala que escondia as marcas de noites mal dormidas, enxugava o balcão com um pano puído. Ele era conhecido no bairro: um sujeito quieto, mas com um sorriso fácil que conquistava os clientes. Mas quem o conhecia de verdade sabia que José carregava um peso invisível, algo que às vezes fazia seus olhos vagarem para o vazio, como se ele estivesse esperando algo - ou alguém.
O sino da porta tilintou, cortando o barulho do bar. Três figuras entraram, e o ar pareceu mudar. Os clientes mais atentos baixaram o tom de voz, e até o rádio pareceu perder força. José congelou por um instante, o pano parado no balcão. Ele conhecia aqueles homens. Não precisava olhar duas vezes para reconhecer o jeito de andar, as roupas escuras, os olhares que cortavam como lâminas. Eram capangas de Miguel, o homem que controlava as entranhas de Vila Nova com mãos de ferro e um sorriso frio.
O líder do trio, um homem corpulento chamado Vargas, com uma cicatriz que atravessava a sobrancelha esquerda, se aproximou do balcão. Os outros dois, conhecidos apenas como Tito e Rato, ficaram um passo atrás, os olhos varrendo o ambiente. Vargas se inclinou, os antebraços apoiados no balcão, e falou baixo, mas com uma autoridade que não deixava espaço para réplicas.
- José, meu amigo. Quanto tempo, hein? - A voz de Vargas era rouca, quase amigável, mas carregava um veneno sutil. - O chefe tá perguntando por você.
José engoliu em seco, o pano escorregando de suas mãos. Ele tentou manter a compostura, forçando um sorriso que não convencia.
- Vargas. Não esperava vocês por aqui. - Ele limpou as mãos no avental, mais por nervosismo do que por necessidade. - O que o Miguel quer agora?
Vargas riu, um som curto e seco, como se a pergunta fosse uma piada. Ele se inclinou ainda mais, o rosto tão perto que José podia sentir o cheiro de cigarro e uísque no seu hálito.
- Você sabe o que ele quer, José. Não se faz de bobo. - Ele fez uma pausa, deixando o peso das palavras pairar. - Aquela dívida não vai sumir sozinha. O chefe tá ficando impaciente.
José desviou o olhar, os dedos tamborilando no balcão. Ele sabia do que Vargas falava, mas o que exatamente era essa dívida? Algo em seu passado, algo que ele tentava enterrar, mas que sempre voltava para assombrá-lo. Ele abriu a boca para responder, mas Tito, o mais magro dos capangas, com um olhar viperino, o interrompeu.
- Duas horas, José. - A voz de Tito era afiada, cortante. - Você tem duas horas pra entregar o que deve. E não é dinheiro que o Miguel quer dessa vez.
José sentiu o sangue gelar. Ele olhou de Vargas para Tito, depois para Rato, que permanecia calado, mas com um sorriso torto que era mais ameaçador que qualquer palavra. O que Miguel queria? Por que agora? E por que a menção a algo além de dinheiro? José pensou em Alaz, seu filho, dormindo tranquilo em casa, e um calafrio percorreu sua espinha.
- Eu... eu não sei do que vocês estão falando - gaguejou José, mas sua voz tremia, traindo-o.
Vargas se endireitou, batendo as mãos no balcão com força suficiente para fazer os copos tremerem.
- Não testa a paciência do chefe, José. Duas horas. E é melhor que seja o que ele pediu. - Ele se virou, fazendo um sinal para os outros dois. - A gente volta. E você não vai querer que a gente volte bravo.
Os três saíram do bar, deixando um silêncio incômodo no ar. José ficou parado, o coração disparado, as mãos trêmulas. Ele sabia que não podia ignorar a ameaça. Não com Miguel. Não com aqueles homens. Ele jogou o pano no balcão, gritou para o ajudante que precisava sair e correu para a rua, o medo pulsando em suas veias.
...
Enquanto isso, em uma casa modesta no fim da Rua das Acácias, Clara cantarolava uma canção de ninar enquanto arrumava a pequena sala. Aos 28 anos, Clara era a definição de resiliência: cabelos castanhos presos em um coque frouxo, olhos gentis, mas com uma força que vinha de anos enfrentando dificuldades ao lado de José. Ela dobrava roupas, varria o chão e organizava os poucos brinquedos de Alaz, que dormia no berço no quarto ao lado. A casa era simples, mas cheia de amor: fotos emolduradas de momentos felizes, cortinas coloridas costuradas por ela mesma, e o cheiro de café fresco que ainda pairava no ar.
O som da porta da frente se abrindo com violência a fez parar. José entrou como um furacão, o rosto pálido, os olhos arregalados. Ele trancou a porta atrás de si e correu para Clara, segurando-a pelos ombros.
- Clara, pega o Alaz e arruma as malas. Agora! - Sua voz era um misto de desespero e urgência. - A gente precisa ir embora. Já!
Clara franziu a testa, confusa, o pano de prato ainda nas mãos.
- José, o que tá acontecendo? Por que essa pressa? Você tá me assustando!
- Não tem tempo pra explicar! - Ele quase gritou, correndo para o quarto e abrindo gavetas, jogando roupas em uma bolsa velha. - Pega o Alaz, Clara! Pega ele e arruma o que puder. A gente tem que sair dessa cidade agora!
Clara ficou paralisada por um instante, o coração apertado. Ela nunca tinha visto José assim, tão fora de si. Ele sempre foi calmo, mesmo nas piores crises. O que poderia ter acontecido no bar para deixá-lo nesse estado? Ela correu para o quarto de Alaz, pegando o bebê com cuidado. O menino resmungou, mas não acordou, aninhado nos braços da mãe. Clara começou a jogar fraldas e roupas em uma mochila, o medo começando a tomar conta dela.
- José, me diz o que tá acontecendo! - insistiu ela, voltando para a sala com Alaz no colo. - É dinheiro? É algum problema no bar? Fala comigo!
José parou por um segundo, os olhos cheios de angústia. Ele queria contar, queria explicar, mas como poderia? Como contar a Clara sobre o passado que ele jurou deixar para trás? Sobre os erros que cometeu antes de conhecê-la? Sobre o que Miguel realmente queria? Ele apenas balançou a cabeça, a voz rouca.
- Não é hora, Clara. Confia em mim. A gente precisa ir.
Antes que Clara pudesse responder, o som de pneus cantando na rua os fez congelar. José correu para a janela, afastando a cortina com cuidado. Três carros pretos, com vidros escuros, pararam em frente à casa. Portas se abriram, e vultos desceram, as silhuetas iluminadas apenas pelos postes fracos da rua. José reconheceu o jeito de andar de Vargas. Eles tinham voltado. E não tinham esperado as duas horas.
- Clara, vai! - José gritou, empurrando-a em direção à porta dos fundos. - Corre com o Alaz! Sai pelos fundos, agora!
Clara, com lágrimas nos olhos e o coração disparado, segurou Alaz com mais força.
- José, vem com a gente! O que tá acontecendo? - Sua voz tremia, mas José já estava pegando uma pistola escondida em uma gaveta da cômoda, um segredo que Clara nunca soubera que existia.
- Vai, Clara! Protege nosso filho! - Ele a empurrou suavemente, mas com firmeza, em direção à porta dos fundos. - Não olha pra trás!
Clara correu, os pés descalços batendo contra o chão frio. Ela abriu a porta dos fundos, o ar gelado da noite invadindo seus pulmões. Com Alaz apertado contra o peito, ela começou a correr pelo quintal escuro, o som de vozes graves e passos pesados ecoando da frente da casa. Então, o silêncio foi quebrado por disparos. Tiros altos, secos, que cortaram a noite como facas. Clara parou por um instante, o corpo tremendo, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Ela queria voltar, queria gritar pelo marido, mas o choro de Alaz a trouxe de volta à realidade. Ela precisava protegê-lo.
Os tiros ainda ecoavam no ar quando Clara desapareceu na escuridão, deixando para trás a casa, José, e todas as respostas que ela nunca teve. O que José devia a Miguel? Por que queriam seu filho? E o que aqueles tiros significavam? A noite engoliu Vila Nova, e com ela, o início de um segredo que mudaria tudo.