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O Indomável - Capítulo 3: Prisioneira do Silêncio
Vila Nova, um mês depois
O quarto onde Clara estava trancada era uma prisão disfarçada de conforto. As paredes, pintadas de um bege pálido, eram adornadas com molduras douradas, mas a beleza era sufocante, como uma gaiola de ouro. Uma cama de solteiro com lençóis impecáveis, uma cômoda de mogno, uma pequena janela com grades que deixava entrar apenas fiapos de luz, e uma pilha de livros velhos em um canto - era tudo o que Clara tinha para preencher seus dias. O silêncio era seu maior inimigo, quebrado apenas pelo choro distante de Alaz, que ela ouvia em raros momentos, ecoando pelos corredores da mansão de Miguel. Cada som do filho era uma facada, um lembrete de que ele estava tão perto, mas fora de seu alcance.
Duas vezes por dia, como um relógio, uma empregada silenciosa abria a porta. De manhã, trazia uma bandeja com café preto, pão seco e um ovo cozido. À noite, o jantar: arroz, feijão, uma fatia de carne insossa e, às vezes, uma maçã murcha. A empregada, uma mulher de meia-idade com olhos baixos e mãos calejadas, nunca respondia às perguntas de Clara. "Onde tá meu filho? O que fizeram com o José? Por que tô aqui?" - as súplicas caíam no vazio. A porta se fechava com um clique, e Clara voltava à sua solidão.
Foi no desespero que Clara encontrou um propósito. No canto do quarto, entre os livros empoeirados, ela descobriu um caderno com algumas páginas em branco. Com um toco de lápis que encontrou na cômoda, começou a escrever cartas para Alaz. Eram palavras de amor, de esperança, de promessas que ela temia nunca cumprir.
"Meu pequeno Alaz, você é minha luz. Não sei se um dia vai ler isso, mas quero que saiba que sua mãe lutou por você. Que nunca deixou de te amar. Eles podem me prender, mas meu coração tá com você, sempre."
As cartas eram sua âncora, sua forma de manter Alaz vivo em sua mente. Mas Clara sabia que, se fossem encontradas, poderiam ser usadas contra ela. Então, à noite, quando a mansão silenciava, ela levantava uma tábua solta no chão de madeira do quarto, um segredo descoberto por acaso ao derrubar um livro. Ali, sob a madeira rangente, ela escondia as cartas, empilhando-as com cuidado, como se fossem um tesouro. Cada palavra escrita era uma pequena rebelião, uma promessa de que ela não desistiria.
Um ano depois...
Os dias se arrastaram, fundindo-se em um borrão de angústia. O cabelo de Clara, antes brilhante, agora estava opaco, preso em um coque desleixado. Seus olhos, outrora cheios de vida, carregavam olheiras profundas, marcas de noites insones e lágrimas secas. Ela perdeu a conta de quantas cartas escreveu para Alaz - dezenas, talvez centenas, escondidas sob o assoalho. Cada uma contava histórias sobre José, sobre o amor deles, sobre os sonhos que tinham para o filho. Mas o peso do confinamento estava corroendo sua alma. Ela não podia mais esperar. Não podia mais confiar que alguém a salvaria. Se quisesse rever Alaz, precisaria agir.
Clara começou a planejar sua fuga. Observava cada detalhe: o horário das empregadas, o som dos passos dos capangas no corredor, a forma como a porta era trancada. A janela com grades era inútil, mas a porta... a porta era sua única chance. Ela precisava de uma arma, algo para se defender. Durante semanas, estudou as bandejas de comida, procurando algo útil. Facas nunca vinham - os capangas eram cuidadosos. Mas os garfos... os garfos de metal, com dentes afiados, podiam servir.
Naquela noite, quando a empregada trouxe o jantar - uma sopa rala, um pedaço de pão e um garfo -, Clara viu sua chance. Assim que a porta se fechou, ela pegou o garfo e o escondeu sob o travesseiro, o coração disparado. Era agora ou nunca. Ela esperou, contando as horas, ouvindo o silêncio da mansão se aprofundar à medida que a noite avançava. O plano era simples: usar o garfo para atacar quem abrisse a porta, correr pelos corredores e encontrar Alaz. Ela não sabia onde ele estava, mas seu instinto de mãe a guiaria. Tinha que guiar.
Por volta das duas da manhã, o som de passos quebrou o silêncio. Não eram os passos leves da empregada, mas o caminhar firme e arrogante que Clara reconheceria em qualquer lugar. A porta se abriu, e Sônia Almeida entrou, o rosto iluminado pela luz fraca do abajur. Ela usava um robe de seda preto, os cabelos loiros soltos, e um sorriso cruel que fez o estômago de Clara revirar.
- Ainda acordada, Clara? - debochou Sônia, fechando a porta atrás de si. - Não cansa de sonhar com uma fuga que nunca vai acontecer?
Clara se levantou da cama, os punhos cerrados, o garfo escondido na manga do vestido puído. - Cadê meu filho, Sônia? - perguntou, a voz firme apesar do tremor em seu corpo. - O que vocês fizeram com ele?
Sônia riu, um som que ecoou como veneno. - Seu filho? Ele tá melhor sem você. Uma mãe que não sabe nem proteger o próprio marido não merece um filho. José já pagou o preço dele. Agora é sua vez.
- Você não sabe nada sobre mim ou sobre o José! - retrucou Clara, dando um passo à frente. - Vocês são monstros. Vão pagar por tudo isso.
- Pagar? - Sônia se aproximou, o rosto contorcido de desprezo. - Quem paga sou eu, Clara. Todos os dias, desde que seu marido tirou meu Lucas de mim. Você acha que um ano trancada aqui é sofrimento? Você não viu nada ainda.
A raiva explodiu em Clara como uma chama. Ela não aguentava mais as provocações, o veneno, a dor de estar separada de Alaz. Com um grito, ela puxou o garfo da manga e o cravou no braço de Sônia, o metal rasgando a pele. Sônia gritou, mais de surpresa do que de dor, e recuou, segurando o braço ensanguentado.
- Sua vadia! - berrou Sônia, enquanto Clara aproveitou o momento para correr até a porta, empurrando-a com o ombro e disparando pelo corredor.
A mansão era um labirinto de corredores escuros e portas trancadas. Clara correu, o coração na garganta, os pés descalços batendo contra o chão de mármore frio. Ela ouviu gritos atrás de si, o som de Sônia chamando os capangas. "Peguem ela! Agora!" Clara não olhou para trás, mas sabia que o tempo estava contra ela. Ela precisava encontrar Alaz, precisava...
Seus passos a levaram ao topo de uma escadaria imponente, o corrimão de madeira polida brilhando sob a luz de um lustre de cristal. Era o coração da mansão, o ponto onde todos os corredores convergiam. Clara parou, ofegante, olhando para baixo. A escada descia em uma curva elegante, mas não havia para onde ir. Antes que pudesse decidir, o som de botas pesadas ecoou. Vargas, Tito e Rato surgiram, bloqueando as saídas. Clara estava encurralada.
Sônia apareceu logo atrás, o braço sangrando, mas o rosto contorcido de fúria. - Você acha que pode me desafiar? - gritou ela, arrancando uma pistola da mão de Vargas. - Acha que pode escapar de mim?
Clara segurou o corrimão, as pernas tremendo, mas o olhar desafiador. - Eu vou encontrar meu filho, Sônia. Nem que seja a última coisa que eu faça.
Sônia apontou a arma, os olhos faiscando de ódio. - Então que seja a última coisa.
O disparo ecoou, um som ensurdecedor que pareceu parar o tempo. A bala atingiu Clara no peito, e ela cambaleou, os olhos arregalados de choque. Por um instante, tudo ficou em silêncio. Então, seu corpo cedeu, e ela caiu, rolando pelos degraus da escada, o vestido rasgado manchado de vermelho. Quando parou no último degrau, seus olhos estavam abertos, sem vida, voltados para o teto como se ainda buscassem Alaz.
Sônia desceu a escada lentamente, a pistola ainda na mão, o rosto uma máscara de frieza. Ela olhou para o corpo de Clara, sem um pingo de remorso. - Enterrem ela no jardim - ordenou aos capangas, a voz firme. - E não deixem rastros.
Vargas e Tito trocaram olhares, mas obedeceram, arrastando o corpo de Clara para fora da mansão, enquanto Sônia voltava para o quarto, limpando o sangue do braço como se nada tivesse acontecido. O silêncio voltou à mansão, mas o peso da morte de Clara pairava no ar, um segredo a mais para ser enterrado nos jardins de Miguel.