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O Indomável - Capítulo 2: O Preço do Passado
Vila Nova, 24 anos atrás
O ar da noite era cortante, e o choro de Alaz, ainda aninhado nos braços de Clara, ecoava como um grito de desespero na escuridão. Clara corria, os pés descalços pisando com força no chão irregular do quintal dos fundos, enquanto os ecos dos tiros ainda ressoavam em sua mente. José. O que tinha acontecido com José? Cada disparo que ela ouvira era como uma facada em seu coração, mas não havia tempo para parar, para pensar, para chorar. Ela precisava salvar Alaz, seu bebê de seis meses, o único pedaço de esperança que restava.
As luzes da Rua das Acácias ficavam para trás, e Clara, com o fôlego curto e o rosto molhado de lágrimas, alcançou uma estrada de terra que cortava o bairro operário de São Lázaro. A poeira subia sob seus pés, e o peso de Alaz parecia dobrar a cada passo. A estrada era mal iluminada, ladeada por mato alto e árvores esparsas, com o silêncio da noite quebrado apenas pelo som distante de motores. Clara olhou para trás, o coração disparado, temendo ver os vultos dos capangas de Miguel emergindo da escuridão. Ela precisava de ajuda. Precisava escapar.
De repente, faróis cortaram a penumbra. Um carro velho, um fusca azul com a pintura descascada, apareceu na estrada, vindo em sua direção. Clara, com Alaz apertado contra o peito, correu para o meio da estrada, os braços abertos, o desespero estampado no rosto.
- Por favor! Me ajuda! - gritou ela, a voz rouca de tanto correr e chorar. - Meu filho... preciso sair daqui!
O motorista, um homem de meia-idade com barba mal aparada e olhos assustados, freou o carro bruscamente. Ele baixou o vidro, hesitante, olhando para Clara e o bebê.
- O que tá acontecendo, moça? - pergunt
ou ele, a voz tremendo. - Tá tudo bem?
- Não, não tá! - Clara se aproximou, as lágrimas escorrendo. - Por favor, me leva pra qualquer lugar, mas rápido! Eles tão vindo!
Antes que o homem pudesse responder, o ronco de motores cortou a noite. Três pares de faróis surgiram na curva da estrada, os carros pretos dos capangas de Miguel avançando como predadores. O homem no fusca olhou pelo retrovisor, os olhos arregalados de pavor. Ele balançou a cabeça, o medo tomando conta.
- Desculpa, moça, mas isso é encrenca grande. Não posso me meter! - Ele pisou no acelerador, e o fusca disparou, deixando uma nuvem de poeira e Clara sozinha na estrada.
- Não! Volta! - gritou Clara, mas o carro já era apenas um borrão vermelho desaparecendo na escuridão. Ela cambaleou, as pernas fraquejando, o choro de Alaz ficando mais alto. Não havia para onde correr agora.
Os três carros pararam em um semicírculo, bloqueando a estrada. As portas se abriram, e Vargas, Tito e Rato desceram, suas silhuetas ameaçadoras sob a luz dos faróis. Vargas deu um passo à frente, a cicatriz na sobrancelha brilhando como uma marca de crueldade.
- Fim da linha, Clara - disse ele, a voz fria. - Não precisava ter corrido. Isso só piora as coisas.
Clara recuou, segurando Alaz com tanta força que suas mãos tremiam. - Fiquem longe do meu filho! - gritou ela, a voz quebrada, mas cheia de determinação. - O que vocês querem? O que o José fez?
Tito riu, um som baixo e cruel. - Pergunta pro seu marido, querida. Ou melhor, pergunta pro chefe. Ele tá esperando vocês.
Rato, o mais silencioso, deu um passo à frente, segurando um revólver com naturalidade. - Entra no carro, Clara. Não faz a gente te obrigar.
Clara olhou ao redor, desesperada, procurando uma saída, mas a estrada era um corredor sem fim, e os capangas eram uma muralha. Com o coração apertado, ela cedeu, as lágrimas caindo enquanto entrava no banco traseiro de um dos carros, Alaz ainda agarrado a ela. O cheiro de couro e cigarro a envolveu, e o motor rugiu enquanto os carros aceleravam rumo ao desconhecido.
...
A viagem pareceu uma eternidade, mas não demorou mais que trinta minutos. Os carros cruzaram Vila Nova, deixando para trás as ruas pobres de São Lázaro e entrando nos bairros nobres, onde mansões cercadas por muros altos e portões de ferro dominavam a paisagem. Eles pararam em frente a uma propriedade imponente, uma fortaleza de pedra e vidro que parecia engolir a luz da lua. Era a mansão de Miguel, o homem que controlava Vila Nova como se fosse seu reino particular.
Clara foi escoltada para dentro, os braços ainda envolvendo Alaz, que agora chorava baixo, como se sentisse o peso do momento. O interior da mansão era opulento, com lustres de cristal, tapetes persas e quadros que pareciam custar mais que a casa inteira de Clara. Vargas a guiou por um corredor longo, até uma sala de estar onde uma mulher aguardava, sentada em uma poltrona de veludo vermelho.
Era Sônia Almeida, 38 anos, a esposa de Miguel. Vestida com um vestido preto que abraçava sua silhueta, Sônia tinha uma beleza fria, os cabelos loiros presos em um coque impecável e olhos verdes que pareciam enxergar através das pessoas. Ela segurava um copo de vinho, mas seus dedos tamborilavam no vidro, denunciando uma raiva contida. Quando Clara entrou, Sônia a mediu de cima a baixo, o olhar carregado de desprezo.
- Então, você é a Clara - disse Sônia, a voz melíflua, mas com um tom que cortava como vidro. - A mulher do José. A mãe do... - Ela olhou para Alaz, e algo em seu olhar escureceu. - Desse menino.
Clara segurou Alaz com mais força, o instinto protetor falando mais alto que o medo. - O que vocês querem com a gente? O que aconteceu com o José? - perguntou ela, a voz tremendo, mas firme.
Sônia se levantou, caminhando lentamente até Clara, cada passo calculado. - José... ah, José. Ele nunca te contou, não é? Sobre o que ele fez. Sobre o que ele nos deve.
- Ele não me esconde nada! - retrucou Clara, mas a dúvida já começava a corroer sua certeza. José sempre foi reservado sobre seu passado, sempre mudava de assunto quando ela perguntava sobre os anos antes de se conhecerem.
Sônia riu, um som amargo. - Não esconde? Então por que você nunca soube do meu filho, Clara? Do meu Lucas, que tinha só 19 anos quando seu marido o tirou de mim?
Clara congelou, os olhos arregalados. - Do que você tá falando?
Sônia se aproximou, o rosto a centímetros do de Clara. - José matou meu filho. Atropelado, como se ele fosse nada. Um acidente, ele disse. Mas acidentes têm consequências, Clara. E o José pagou por isso... ou pelo menos, tentou.
- Não... - Clara balançou a cabeça, as lágrimas voltando. - José nunca seria capaz disso. Ele não é um assassino!
- Assassino ou não, ele destruiu minha vida! - Sônia gritou, o copo de vinho tremendo em sua mão. - E nesses últimos anos, ele trabalhou pra nós, pra Miguel, como punição. Fazendo os serviços sujos, pagando a dívida que nunca vai ser quitada. Mas agora... agora ele foi longe demais. E você e esse bebê vão pagar o preço.
Clara sentiu a raiva subir, uma onda que apagou o medo. - Você tá mentindo! José não é assim! Ele nunca faria isso de propósito! - Sem pensar, ela deu um passo à frente e, com a mão livre, acertou um tapa no rosto de Sônia, o som ecoando na sala.
Por um instante, o tempo parou. Vargas, Tito e Rato, que observavam em silêncio, deram um passo à frente, mas Sônia levantou a mão, detendo-os. Seu rosto, agora marcado por uma vermelhidão onde o tapa acertou, contorceu-se em um sorriso frio.
- Você é corajosa, Clara. Mas coragem não vai te salvar. - Ela fez um gesto brusco para os capangas. - Tranca ela no quarto. E tragam o bebê.
- Não! - Clara gritou, tentando segurar Alaz, mas Rato foi mais rápido, arrancando o menino de seus braços com uma força bruta. Alaz chorou alto, os bracinhos se debatendo no ar.
Sônia se aproximou de Clara, o olhar faiscando de ódio. - Você nunca mais vai ver seu filho, Clara. Nunca.
Clara lutou, gritando, enquanto Vargas e Tito a arrastavam para fora da sala, seus gritos ecoando pelos corredores da mansão. A última coisa que ela viu foi Sônia segurando Alaz, o bebê chorando desesperadamente, enquanto a porta do quarto se fechava com um estrondo.