É a primeira vez que vejo meu reflexo depois que me transformei em uma terras-firmes. Pisco surpresa com a minha aparência. Será que sou considerada bonita para os padrões dos terras-firmes? Tenho cabelos pretos com degrade para um azul-escuro, me fazendo recordar da minha cauda. Meus olhos são escuros e grandes. Gosto do tom da minha pele, não é clara igual à Violet, mas não sei nomear o tom.
"Violet, como é o tom da minha pele?" pergunto curiosamente enquanto me encaro no espelho que há atrás do que eles chamam de bar.
A moça me olha confusa e me analisa de cima para baixo.
"Você tem uma pele divina, parda, bronzeada que muitas mulheres pagam fortunas para conseguir." Violet responde com um sorriso no rosto. "Mas precisamos te ajeitar. Essa camisa do chefe é quase uma camisola em você."
Abro um sorriso com o seu elogio. Minha pele é divina, gosto dessa descrição. Gosto da Violet. Ela me leva para os fundos do bar, ouço uma voz masculina vindo de uma das portas fechadas e me sinto apreensiva. Até que chegamos dentro de um cômodo com sofás, roupas e espelhos.
"Aqui é o camarim, é pequeno, mas tem tudo o que você vai precisar," Violet comenta feliz.
Depois de vários minutos, Violet me ajeita do jeitinho que ela quer. Me olho novamente no espelho e o meu novo visual é bem agradável. Meus cabelos estão presos em um rabo de cavalo para baixo. Violet me colocou em calças e uma camisa mais do meu tamanho.
"Vem, vou preparar algo para você comer. O que você gosta?" Violet questiona enquanto voltamos para frente.
"Qualquer coisa," respondo com um murmúrio.
Não faço a mínima ideia do que essa gente come aqui na terra.
"Quem é essa?" Uma voz masculina pergunta atrás de mim.
Giro o meu corpo assustado e me deparo com um homem de pele escura, alto, musculoso igual a Romeu. Seu olhar é de desconfiança e ameaçador.
"Vanessa. Romeu trouxe para cá e pediu para que eu cuidasse dela." Violet responde de forma seca. "Vai para lá, você está assustando a coitada, Rael!"
Rael abre um sorriso e suaviza mais o rosto na minha direção. Ele estende a mão, igual a Romeu fez horas atrás comigo na praia.
"Ela não gosta de toque," Violet explica e eu abro um sorriso constrangido. "Não precisa ter medo do Rael não, querida. Ele parece um urso pardo feroz, mas é mais um ursinho de pelúcia com dreads," Violet declara com uma risada.
"Não é assim que você deve falar de mim, sou o beta dessa alcateia!" Rael responde contrariado e se senta perto de mim.
"Eu nem sequer sou uma loba, essa posição não tem peso nenhum para mim," Violet retruca.
Observo ela pegar várias coisas e eu tenho vontade de perguntar o que são cada uma delas, porém, me mantenho em silencio. Percebi que todas as perguntas que já fiz, soam esquisitas para eles.
"Você sabe falar, menina?" Rael pergunta com a voz grossa e vibrante.
"S-sim..." gaguejo a resposta, assustada.
"Você tem um cheiro diferente... o que você é?" Rael questiona curioso e desconfiado.
Violet lança um olhar severo para Rael.
"Deixa a menina quieta!" Violet adverte Rael. Ela coloca um prato na minha frente com todas as coisas que eu a vi pegando. "Aqui está, querida, bom apetite."
Olho a comida e ela parece apetitosa, é quando meu estomago faz um barulho esquisito e me vejo dando uma mordida sem me importar com o que é.
***
Passo o dia inteiro dentro do bar, como se fosse parte da mobília, imóvel, apenas observando. Me encaixo em uma cadeira no canto, meio escondida pela penumbra e pelas garrafas alinhadas na prateleira atrás do balcão. Meus olhos seguem cada movimento de Violet e Rael, que parecem viver dentro de uma dança improvisada, ritmada pelos afazeres do bar. Eles arrumam coisas, organizam objetos que não entendo, limpam superfícies com uma energia constante. Eles falam entre si com uma familiaridade que me soa quase mágica. Há risos, provocações e olhares de cumplicidade que trocam como se fossem palavras secretas.
Às vezes, fazem perguntas que me atingem como farpas, pequenas e afiadas. Perguntas sobre coisas simples para eles, mas que, para mim, são secretas. E eu, em troca, lanço minhas próprias dúvidas, carregadas de inocência e estranhamento. Perguntas que os fazem franzir o cenho, coçar a cabeça e olhar um para o outro como se tentassem entender como é possível alguém não saber o que é um "tomada", ou "wi-fi".
Mas, estranhamente, esse ciclo de confusão mútua me conforta. Aprendo muito. Essas descobertas distraem minha mente dos meus próprios monstros internos. E por algumas horas, só algumas, consigo esquecer do peso no meu peito.
Do nada, sinto um puxão em meu centro, uma fisgada invisível e profunda. Não é uma dor qualquer - é um rasgo, um afastamento, como se uma parte de mim estivesse sendo sugada por mãos invisíveis e frias. Como se estivessem escavando dentro de mim, mexendo onde não deveriam. A sensação é tão visceral que chego a apoiar a mão sobre o peito, tentando, em vão, segurar o que quer que esteja sendo levado. Meus dedos apertam o tecido da roupa, como se isso fosse suficiente para segurar minha essência no lugar.
É quase igual à dor que senti quando me separei da minha cauda. Não... pior. Porque agora, eu nem sei exatamente o que está sendo separado de mim.
Enquanto isso, Violet e Rael continuam, alheios ao meu incomodo interno. Eles se provocam quase o tempo inteiro, com frases rápidas e olhares intensos. Um joga uma toalha no outro, ela revira os olhos, ele responde com uma careta debochada. Existe uma leveza na forma como eles se tratam que me intriga.
Para alguém como eu, que cresceu ouvindo que criaturas da superfície são caçadores e destruidores, ver um lobisomem e uma humana se cutucando com sorrisos é quase surreal.
Talvez os tempos tenham mudado. Talvez os monstros tenham virado lendas.
Outros integrantes da alcateia de Romeu entram e saem do bar ao longo do dia. Alguns me olham curiosos, com sobrancelhas arqueadas e narizes farejando o ar como se tentassem identificar meu cheiro, minha origem. Mas Violet e Rael logo tratam de espantá-los com palavras firmes ou olhares cortantes.
"Quando o Romeu volta?" pergunto baixinho.
Rael olha para o relógio e dá de ombros.
"Talvez mais tarde. Não se preocupe. Aqui me ajude com isso..." Rael responde e me chama com a mão para perto do palco.
Eu obedeço, meio hesitante. Ele me entrega alguns fios e observo ele ir desenrolando cada um e colocando perto das caixas de som.
"Você vai cantar hoje, Violet?" Rael pergunta e eu olho para Violet.
A jovem moça nega com a cabeça enquanto coloca os guardanapos nas mesas.
"Não, hoje eu fico na escala das mesas."
Rael então se vira para mim com aquele brilho brincalhão nos olhos.
"E você, Vanessa? Sabe cantar?"
A pergunta me pega desprevenida. Nós sereias somos conhecidas por eles como criaturas traiçoeiras que atraiam marinheiros para o fundo do mar com o nosso canto. Bem, não é uma mentira, mas isso é algo que outro reino fazia, não o meu.
"Acho que sim..." respondo acanhada.
"Cante para nós alguma coisa!" Violet se anima, e seus olhos brilham como estrelas recém-acesas.
Antes que eu possa recusar, Rael já me estende um microfone, como se ele tivesse certeza de que eu aceitaria. Me sinto acanhada e insegura. Será que meu canto de sereia terá algum efeito fora do mar?
Seguro o microfone com as duas mãos e começo a apenas cantarolar algumas notas, sem dizer qualquer palavra. Uma melodia que surge sozinha, antiga, que parece brotar do meu ventre e escorrer pela minha garganta como água morna. Minha voz fica mais suave e meu corpo mesmo começa a relaxar. Fecho meus olhos e o que invade a minha mente é as ondas se quebrando na costa, o cheiro de maresia e a lembrança da minha família. Me perco na melodia e nas memórias do oceano.
"Uau, é verdade então..." Romeu declara de repente.
Eu abro meus olhos surpresa com a interrupção. Romeu está diferente agora, assim como eu, ele mudou de roupa. Veste uma camisa azul clara de botões, uma calça escura e seus cabelos estão penteados para trás. Seu olhar está fixado em mim e seus lábios carnudos estão curvados em um meio sorriso.
"O que, alfa?" Rael indaga confuso.
Romeu aponta para mim e um sorriso malicioso surge em seus lábios.
"Ela é um peixinho muito especial, não é mesmo, Vanessa?" Romeu declara e meu corpo gela no lugar.