A televisão no quarto do hospital transmitia a celebração da vitória de Isabela.
Ela sorria, radiante, no palanque.
"Agradeço especialmente a Ricardo, meu assessor, o pilar do meu sucesso!" a voz dela ecoou.
Ao meu lado, Tiago, meu filho, com os olhos fixos na tela, disse: "O Ricardo é incrível, pai. Devias ser mais como ele."
As palavras dele foram a última facada.
Fechei os olhos. Arrependimento e mágoa. Morri.
Abri os olhos.
Estava na minha cama, em casa. O sol da manhã entrava pela janela.
Quinze anos antes.
Hoje era o dia. O dia em que Isabela lançaria a sua campanha para vereadora. O dia em que eu desisti do meu sonho de ser chef para a apoiar.
Desta vez, não.
Levantei-me, determinado. O livro de receitas do meu avô, a minha herança mais preciosa, estava na gaveta.
Peguei nele. O cheiro a papel velho e a especiarias invadiu-me as narinas.
Desta vez, o legado do meu avô seria honrado.
Saí de casa sorrateiramente.
Fui à melhor academia de culinária da cidade.
"Quero inscrever-me," disse ao Comandante Silva, o diretor, um chef reformado de renome.
Ele olhou-me de cima a baixo. "Já tens idade para isto, meu rapaz?"
"Tenho paixão, Comandante. E tenho isto." Mostrei-lhe o livro do meu avô.
Ele folheou-o com respeito. "Veremos o que vales."
Fui aceite.
Cheguei a casa. Isabela falava ao telefone, agitada.
"Sim, Ricardo, a campanha vai ser um sucesso contigo ao meu lado."
Ela desligou e olhou para mim, distraída. "João, onde estiveste?"
"Resolvi umas coisas," respondi, vago.
Ela não insistiu, já de volta aos seus papéis, aos seus planos.
Tiago entrou na sala, correu para ela. "Mãe, o Ricardo vem hoje?"
"Sim, querido. Vamos jantar fora para celebrar o início da campanha."
Ela não me convidou. Nem se lembrou de mim.
Mais tarde, ouvi-a ao telefone com Ricardo, na varanda.
"Vou levar o Tiago comigo na digressão de campanha. Tu vens, claro. Sabes lidar melhor com ele e com a logística. O João... bem, ele que fique."
O meu coração gelou. Não por surpresa, mas pela confirmação.
Na minha vida passada, estas palavras tinham sido o início do meu apagamento.
Desta vez, seriam o início da minha libertação.
No dia seguinte, fui a um advogado.
"Quero o divórcio," disse, firme.
Preparei os papéis.
Encontrei Isabela, Ricardo e Tiago a saírem de casa. Pareciam uma família.
Ricardo tinha o braço sobre os ombros de Tiago. Sorriam.
Senti uma pontada de dor, mas a minha resolução era maior.
"Isabela, preciso que assines uns documentos," disse, estendendo-lhe a pasta.
Ela franziu o sobrolho. "Agora, João? Estou atrasada."
Ricardo interveio, com o seu sorriso carismático. "Deixa isso, João. A Isabela tem coisas mais importantes para tratar."
Tiago olhou para mim com desdém. "O pai só atrapalha."
Isabela suspirou. "O que é?"
"São só... uns papéis," menti. Era a minha única hipótese.
Ela pegou na caneta que Ricardo lhe ofereceu. "Anda, Tiago, ajuda a mãe. Entrega-lhe estes papéis para assinar, diz que são documentos da campanha," disse Ricardo a Tiago, piscando-lhe o olho.
Tiago pegou nos papéis que eu tinha na mão e entregou-os a Isabela. "Mãe, o Ricardo disse que são da campanha."
Isabela, com a cabeça já na reunião que se seguia, assinou sem ler.
Entregou-me a pasta. "Pronto. Agora, temos mesmo de ir."
Eles afastaram-se, os três juntos.
Abri a pasta. A assinatura dela estava lá, no acordo de divórcio.