O meu filho, Leo, nasceu morto às três da tarde.
O médico disse que foi por causa da asfixia, causada pela inalação de fumo.
Eu estava presa no incêndio da nossa casa, a ligar para o meu marido, Miguel, repetidamente.
Ele nunca atendeu.
Agora, estou deitada na cama do hospital, o cheiro a desinfetante a misturar-se com o cheiro a queimado que ainda se agarra ao meu cabelo.
A minha sogra, a Dona Isabel, está sentada numa cadeira ao meu lado, a descascar uma maçã com uma faca pequena. A casca cai numa espiral contínua e perfeita.
Ela não olha para mim.
"Isabel," digo eu, a minha voz rouca por causa do fumo e das lágrimas.
"Ele não veio."
Ela suspira, um som cansado.
"Ele estava ocupado, Sofia. A Cláudia estava a ter um ataque de pânico. Tu sabes como ela é frágil."
Cláudia. A prima do Miguel. A sua amiga de infância. A mulher que ele sempre dizia que era "como uma irmã".
"Eu estava a perder o nosso filho," sussurro eu.
A faca para. Isabel finalmente olha para mim, os seus olhos frios.
"O que se foi, foi-se. A vida continua. O Miguel fez o que tinha a fazer."
Ela volta a descascar a maçã, como se estivéssemos a falar do tempo.
Pego no meu telemóvel. O ecrã está estalado por causa do calor. Abro a conversa com o Miguel. As minhas chamadas não atendidas, dezenas delas.
Abaixo delas, uma mensagem que ele me enviou há uma hora.
"A Cláudia já está mais calma. Estou a levá-la a jantar para a animar. Não me ligues, preciso de me concentrar nela. Falamos mais tarde."
Mais tarde.
O meu filho já estava morto há horas.
As minhas mãos tremem. Escrevo uma mensagem.
"Miguel, quero o divórcio."
Envio.
O meu coração não bate mais depressa. Não sinto nada. É como um deserto, vazio e silencioso.
A resposta chega quase imediatamente. Não é uma mensagem. É uma chamada.
Atendo.
"Estás louca?" A voz dele é um rosnado baixo, furioso. "Divórcio? Depois de tudo o que eu passei hoje?"
"Tudo o que tu passaste?" A minha voz sai mais alta do que eu esperava.
"Sim, eu! Achas que é fácil lidar com a Cláudia quando ela está assim? Ela podia ter morrido! O médico disse que o stress podia ter-lhe provocado um ataque cardíaco!"
"E eu? E o Leo? O nosso filho morreu, Miguel!"
Há um silêncio do outro lado. Um silêncio pesado, culpado.
Depois, a voz da Cláudia, fraca e chorosa, ao fundo. "Miguel, quem é? Estás a discutir? A minha cabeça dói tanto..."
"Vês o que fizeste?" ele sibila para o telemóvel. "Estás a chateá-la! Para com este drama, Sofia. Perdemos um filho, eu sei, é triste. Mas não é o fim do mundo. Podemos tentar outra vez. Agora tenho de ir, a Cláudia precisa de mim."
Ele desliga.
Olho para o telemóvel na minha mão. Olho para a minha sogra, que agora come a maçã, fatia por fatia.
Ela não diz uma palavra.
O fim do mundo.
Não, não era o fim do mundo. Era apenas o fim do meu mundo. E, ao que parece, só do meu.