Dois dias depois, recebi alta do hospital.
O Miguel não veio buscar-me. Mandou um táxi.
A nossa casa estava inabitável, uma concha enegrecida. As minhas coisas, as roupas de bebé que eu tinha passado meses a escolher, tudo se fora.
O motorista do táxi levou-me para o apartamento da minha sogra.
Quando entrei, o Miguel estava sentado no sofá, a ver televisão. A Cláudia estava ao lado dele, a cabeça dela apoiada no seu ombro, a dormir.
Ele pôs um dedo nos lábios, a pedir-me silêncio.
"Ela finalmente adormeceu," sussurrou ele. "Teve uns dias terríveis."
Eu fiquei ali, na entrada, com a minha pequena mala do hospital na mão. O meu corpo ainda doía. O meu coração estava oco.
Olhei para eles. Pareciam um casal. Um casal a descansar depois de um dia difícil.
Eu era a intrusa.
"Precisamos de falar," disse eu, a minha voz baixa mas firme.
Ele franziu a testa, irritado por eu ter quebrado o silêncio.
"Agora não, Sofia. Já te disse."
"Agora sim, Miguel."
Ele suspirou, revirou os olhos e, com muito cuidado, tirou a cabeça da Cláudia do seu ombro, pousando-a numa almofada.
Ele seguiu-me para a cozinha. Fechou a porta.
"O que queres?" perguntou ele, cruzando os braços. "Não podemos ter esta conversa noutra altura? A Cláudia está muito sensível."
"Eu quero o divórcio."
Ele riu. Uma risada curta e sem humor.
"Já passámos por isso. Estás a ser dramática por causa das hormonas. É normal depois de... tu sabes."
Ele nem conseguia dizer a palavra. Parto. Filho morto.
"Não são as hormonas. É porque o meu filho morreu enquanto o pai dele estava a consolar outra mulher por causa de um ataque de pânico."
"Eu não sabia que a casa estava a arder!" ele gritou, a sua voz a subir. "Quantas vezes tenho de te dizer isso? Eu estava a cuidar da minha família! A Cláudia é família!"
"E eu não era? O teu filho não nascido não era?"
"Claro que eram! Mas foi uma emergência! Tu estavas em casa, supostamente segura! A Cláudia estava na rua, a hiperventilar! Tive de fazer uma escolha!"
"Tu não fizeste uma escolha, Miguel. Tu ignoraste-me. Desligaste o telemóvel."
"Eu não o desliguei, ficou sem bateria!" mentiu ele, sem sequer olhar para mim.
"Então como é que me ligaste do hospital a gritar comigo?"
Ele ficou em silêncio. Apanhado. A sua cara ficou vermelha de raiva, não de vergonha.
"Isto é ridículo," disse ele por fim. "Não me vou divorciar de ti. Perdemos um filho, devíamos estar a apoiar-nos um ao outro, não a lutar."
"Tu não me estás a apoiar. Estás a apoiar a Cláudia."
"Porque ela precisa mais de mim agora!"
A porta da cozinha abriu-se. A minha sogra, Isabel, entrou.
Ela olhou de mim para ele.
"Parem com os gritos," disse ela, a sua voz cortante. "Vão acordar a Cláudia. E, Sofia, já chega. O meu filho tem um bom coração. Ele tentou ajudar toda a gente. Não o castigues por isso."
Ela pegou num copo de água e saiu.
Fiquei a olhar para o Miguel. Ele não me olhava. Olhava para a porta por onde a sua mãe tinha saído.
"A tua mãe tem razão," disse ele. "Já chega."
Ele saiu da cozinha, deixando-me sozinha no meio dos azulejos frios.