/0/15431/coverbig.jpg?v=841e292a8570a90be15ff73bf03f1006)
Capítulo 3 – Alta Velocidade, Queda Lenta
Narrado por Leonardo
O céu de São Paulo chorava como se pressentisse o que estava por vir.
Lá do alto do Terraço Itália, a cidade parecia um cenário de filme noir - reluzente, trêmula sob a chuva fina, envolta por uma névoa azulada que deixava tudo mais lento, mais grave. Marina estava sentada à minha frente, envolta num vestido prata que abraçava seu corpo como um segredo caro. Cada detalhe da noite tinha sido pensado para impressionar: o vinho francês, a mesa mais reservada do restaurante, a caixinha de veludo negro no bolso do paletó.
Ela sorriu com a precisão de uma atriz indicada ao Oscar. E eu, imbecilmente, me emocionei.
- Está nervoso, Leo? - ela perguntou, apoiando o queixo na mão, fingindo ingenuidade.
- Um pouco. Talvez porque o que eu tenho para dizer muda tudo.
Ela inclinou-se para frente. Os brincos de diamante balançaram levemente, como pequenos lembretes do quanto eu investira nela.
- Então diga.
Respirei fundo. Meus dedos tocaram o bolso interno do paletó, onde a caixinha pesava como uma sentença. Tirei-a com lentidão, depositando-a sobre a mesa com um estalar seco. Ela não fingiu surpresa. Só abriu, contemplou o anel de safira com diamantes ao redor e levantou os olhos para mim, iluminados por velas e promessas.
- Casa comigo, Marina?
Ela demorou. Bastante. Longos segundos em que o silêncio rugia mais alto que a orquestra de cordas ao fundo.
- É claro que sim, meu amor - ela disse, por fim, com um sorriso que me atravessou como uma lâmina doce.
Nos beijamos. E, por um instante, acreditei que aquilo era amor. Que estava fazendo a coisa certa. Que tudo na minha vida convergia para esse momento.
Ah, pobre homem.
Saímos do restaurante pouco antes das vinte e três. Ela insistiu que eu fosse sozinho para resolver o contrato com um investidor americano que estava hospedado no Grand Hyatt. Renato tinha marcado de enviar os documentos atualizados, e o investidor precisava assinar antes da meia-noite por causa da diferença de fuso.
- Eu te espero em casa, amor - ela disse, com os dedos deslizando pelo colarinho da minha camisa. - Hoje é o início de uma nova era para nós.
Sorri, tocando sua cintura. Beijei-a uma última vez e entrei na Ferrari.
A chuva engrossava.
O carro ronronava como uma besta sob controle, deslizando pela Marginal Pinheiros com a suavidade de uma promessa não cumprida. Música clássica no som - uma peça de Rachmaninoff que combinava com o clima, com o humor, com a ilusão de eternidade.
Estava a menos de dez minutos do hotel quando vi as luzes vermelhas piscando ao longe. Um caminhão - gigantesco, escuro, ameaçador - deslizava no asfalto molhado. A traseira balançava como um animal ferido. O motorista tentava controlar, mas era tarde.
Muito tarde.
- Merda - murmurei, girando o volante.
Tudo aconteceu em segundos. A traseira da Ferrari derrapou. Hidroplanagem. Um som de metal rasgando o concreto. O caminhão atravessou a pista, os faróis explodiram contra o capô do meu carro, e então...
O mundo virou.
Vidros estilhaçados. Dor lancinante no braço esquerdo. Sangue. Muito sangue.
Estava de cabeça para baixo, preso pelo cinto. As luzes da cidade dançavam como fantasmas além do para-brisa rachado. Um gosto metálico invadiu minha boca. Meu pulmão arfava, sufocado.
Sirenes ao longe. Pessoas gritando. Passos correndo.
Tentei falar, mas só consegui tossir.
E então, entre a dor e a vertigem, vi o sangue escorrendo pelo volante.
Meus dedos tremiam. Meu peito queimava. Eu sabia. Algo em mim sabia.
Era o fim.
Os rostos dos bombeiros se desfocaram, como se estivessem embaixo d'água. Alguém gritava meu nome. Luzes piscavam. Mãos puxavam meu corpo. Mas tudo se dissolvia numa neblina vermelha.
Pensei nela. Em Marina. Em seu sorriso mentiroso. No vestido prateado. No anel.
Tentei formar palavras, mesmo com a boca cheia de sangue.
- Marina... eu te amo...
E então, nada.
Som. Luz. Consciência. Tudo se apagou.
O homem mais poderoso da Faria Lima sangrava como um desconhecido qualquer no meio do asfalto molhado. E a cidade, implacável, continuava correndo.
Sem saber que, naquele instante exato... o mundo mudava.
Para sempre.