Capítulo 4 Silêncio na UTI

Capítulo 4 – Silêncio na UTI

Narrado por Helena

O telefone tocou às 00h47. E eu soube. Antes mesmo de atender, antes da primeira palavra, antes do nome completo ser pronunciado com a formalidade que só tragédias carregam. Eu soube.

Leonardo.

Corri pela casa ainda vestida com a camiseta larga que usava para dormir e um par de calças de moletom velho. O coração batia como se quisesse escapar do meu peito. Peguei a bolsa, as chaves e, num reflexo automático, deixei o estetoscópio pendurado no pescoço. Um hábito antigo. E inútil, naquela noite.

O Hospital Albert Einstein estava iluminado demais para aquela hora. Mesmo sendo médica, sempre odiei hospitais à noite. São túmulos iluminados, onde a vida e a morte dançam num ritmo cruel. Entrei correndo, a porta de vidro se abrindo com aquele sussurro gélido que parece sempre anunciar más notícias.

- Doutora Helena? - uma enfermeira me abordou.

Assenti, sem conseguir formar palavras. Ela me guiou pelos corredores sem pressa, como se cada segundo não estivesse me torturando.

Até que vi.

A Dra. Renata me aguardava na antessala da UTI. Médica-chefe da ala de emergência. Competente. Fria. E, naquela noite, com os olhos mais pesados do que o habitual.

- Helena... sinto muito - ela começou, sem rodeios.

- Ele está vivo? - minha voz soou mais como uma ordem do que como uma pergunta.

- Sim. Está estável, por enquanto. Mas os ferimentos são graves. O lado esquerdo do corpo foi esmagado pelo impacto. As vértebras torácicas... comprometidas. Há lesão medular.

Fiquei em silêncio.

Lesão medular.

Aquelas duas palavras, ditas com tanta técnica, explodiram dentro de mim como uma granada. Meu irmão. O homem que comandava impérios com uma voz. Que dirigia Ferraris como se fossem extensões da alma. Que dançava com a vida como se ela fosse só dele. Paralisado.

- Há chances de recuperação?

Ela hesitou. E bastou isso para que eu entendesse.

- Estamos fazendo tudo. Mas... as chances são mínimas.

Engoli o choro como quem engole vidro. Eu não tinha o direito de desabar. Não ainda. Respirei fundo e segui até o vidro da UTI. Lá dentro, Leonardo parecia... pequeno. Frágil. Como se tivesse sido dobrado por dentro.

O rosto coberto de hematomas. O braço engessado. Respirador. Monitores apitando como sinos fúnebres.

E Marina, claro, estava ali. De salto alto, vestido justo, maquiagem impecável. Como se fosse a protagonista de um funeral de luxo.

- Helena... - ela veio até mim, os olhos levemente borrados, mas secos demais para quem diz amar.

- Não ouse fingir que está sofrendo - avisei, mantendo a voz baixa. - Não comigo.

Ela ergueu o queixo, sempre altiva. Sempre plástica. Sempre... perigosa.

- Eu o amo.

- Você o ama como uma cobra ama o calor do corpo que vai matar. Você ama o que ele representa, Marina. Não o homem.

- Está me acusando de quê?

- De tudo o que você sabe que fez.

Ela não respondeu. Apenas voltou a olhar para o leito de Leonardo, como se esperasse que ele acordasse e a perdoasse com um único olhar. Mas ele não acordaria. Não agora. Talvez nunca.

Horas depois, já em casa, sentei-me no sofá com um copo de vinho que não conseguia beber. Os flashes da noite ainda me assombravam. Leonardo preso nas ferragens. O som das sirenes. A voz do médico dizendo que havia perda de função motora. E Marina. Sempre Marina.

Liguei o notebook. Abri a pasta de documentos médicos e comecei a fazer buscas por especialistas em reabilitação neurológica. Clínicas. Centros experimentais. Qualquer coisa que me desse uma esperança - mínima que fosse. Eu não permitiria que ele fosse reduzido à sombra do homem que era.

Foi nessa madrugada que encontrei o nome dela pela primeira vez: Clara Mendes. Fisioterapeuta especializada em neuroreabilitação intensiva. Histórico limpo. Recomendações excelentes. E, mais importante, resultados. Casos considerados irreversíveis que haviam ganhado movimento. Dignidade. Vida.

Mas aquilo era para depois. Agora, o presente era o silêncio. E a UTI.

Na manhã seguinte, voltei ao hospital com um casaco escuro e o cabelo preso com raiva. A Dra. Renata me aguardava com novos exames.

- Há um leve edema cerebral. Controlado. Mas o prognóstico motor continua o mesmo. Ainda estamos avaliando a possibilidade de intervenção cirúrgica, mas...

- Mas ele não vai voltar a andar, não é?

- Precisamos ser realistas.

Assenti. O realismo sempre foi meu escudo. Mas, por dentro, algo em mim gritava. Leonardo não era feito para essa prisão.

Entrei na UTI. Ele ainda dormia. Ou estava sedado. Ou ambos. Os dedos entrelaçados sobre o lençol branco. A respiração ritmada pela máquina.

Foi então que Marina apareceu.

Vestia preto. Olhos escondidos por óculos escuros Chanel. Como se estivesse num desfile fúnebre.

Aproximei-me devagar, observando-a com a frieza de quem não precisa mais fingir.

Ela parou ao lado da cama. Retirou os óculos lentamente, como se o momento exigisse um gesto dramático. Olhou para Leonardo. Para o homem que acabara de lhe pedir em casamento. Para o corpo mutilado que mal respirava por conta própria.

E então, com a frieza de uma sentença, murmurou:

- Eu não posso conviver com isso.

Virou-se e saiu.

Sem lágrimas. Sem culpa. Sem amor.

Apenas o vazio que sempre foi.

            
            

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