A noite do nosso quinto aniversário de casamento.
O ar no Rio de Janeiro estava pesado e húmido, prometendo uma chuva que nunca chegava. Eu estava no meu ateliê no Museu de Arte do Rio, o cheiro de terebintina e óleo de linhaça a preencher o espaço.
Tinha planeado uma surpresa para o Diogo. Um jantar no nosso restaurante preferido, o mesmo onde ele me pediu em casamento.
Mas ele cancelou à última da hora.
"Amor, desculpa. Surgiu um ensaio com a banda, não posso faltar. É importante."
A sua voz ao telefone soava distante, quase entediada.
Aceitei, como sempre. A sua carreira vinha primeiro. Ele era Diogo Neves, a nova estrela da Bossa Nova, e eu era apenas a sua esposa, a restauradora de arte que vivia na sua sombra.
Mas uma inquietação tomou conta de mim. Decidi surpreendê-lo de outra forma. Fui até à Lapa, ao boteco onde ele e os seus músicos costumavam ir depois dos ensaios.
Parei à porta, o som de risadas e música a sair para a rua. Vi-o sentado a uma mesa, rodeado de amigos, o seu violão pousado ao lado.
E então, ouvi o seu nome nos lábios de outra mulher.
"Diogo, querido, toca aquela para mim. A nossa."
A voz era melosa, familiar. Era Isabella, a passista de Samba, a sua ex-namorada. A sua "musa" antes de mim.
O meu coração parou.
Um dos seus amigos riu. "Cuidado, Diogo. E a Sofia? A tua santinha?"
Diogo deu uma gargalhada alta, um som que costumava aquecer-me, mas que agora me gelava o sangue.
"A Sofia? Aquela coitadinha? Ela adora-me. Nunca me deixaria. É demasiado dependente, não tem para onde ir."
Ele pegou no violão. As suas mãos, aquelas mãos longas e ágeis, moveram-se sobre as cordas.
As mãos de Léo.
"Esta é para ti, Isa. Sempre foi."
A melodia que ele tocou era uma que eu conhecia bem. Uma composição de Léo, uma que ele nunca chegou a publicar. Uma que Diogo afirmava ter escrito para mim nos primeiros dias do nosso casamento.
A sua voz, suave e carismática, encheu o bar, mas as palavras eram um veneno no meu ouvido.
Ele cantava sobre o glamour, a fama, um mundo que ele dizia que eu nunca entenderia. Ele criticava a minha "simplicidade", o meu trabalho "empoeirado" no museu, a minha vida "pacata".
Ele justificava a sua traição como uma necessidade, uma fuga da monotonia que eu representava.
Uma risada amarga escapou dos meus lábios, silenciosa, perdida no barulho do bar.
Monotonia.
Um flashback atingiu-me com a força de um soco. A imagem de Diogo, há três anos, deitado numa cama de hospital. O seu corpo quebrado depois do acidente de moto. As suas mãos, esmagadas, a sua carreira de músico aparentemente terminada.
Eu estava lá.
Eu segurei o que restava das suas mãos. Eu chorei por ele. Eu procurei os melhores médicos, implorei por uma solução.
E encontrei-a. Um transplante. Um doador compatível que tinha morrido no mesmo dia, no mesmo terrível engavetamento na Ponte Rio-Niterói.
Léo.
Lembrei-me das promessas de Diogo, sussurradas com a voz fraca no quarto do hospital.
"Sofia, eu devo-te a minha vida. As minhas mãos. Eu nunca te vou deixar. Serei teu para sempre."
Para sempre.
E agora, no nosso quinto aniversário de casamento, a sua traição transformava o meu sacrifício, a minha devoção, num espetáculo ridículo.
Eu não o estava a adorar. Eu estava a adorar as mãos dele. A ver o sonho de Léo, o meu Léo, tornar-se realidade através do corpo de outro homem.
E esse homem estava a usar o dom de Léo para me humilhar.