O médico do outro lado da mesa a observou com um olhar de pena contida, um profissionalismo que não conseguia mascarar completamente a tristeza da situação. Câncer de estômago em estágio terminal, com um histórico familiar que tornava a doença ainda mais agressiva. As palavras dele ecoavam em sua mente, frias e definitivas.
"Tem certeza, Clara? Você ainda é jovem."
Clara apenas acenou com a cabeça, um sorriso fraco e vazio em seus lábios. Ela empurrou o documento assinado pela mesa de madeira polida. "Tenho certeza. Não há mais nada a fazer."
Ela se levantou, ajeitou o casaco fino e saiu do consultório sem olhar para trás. O ar frio da cidade a atingiu, mas ela não sentiu o arrepio. Dentro dela, havia um frio muito maior, um vazio que nenhuma temperatura externa poderia igualar.
Ao chegar em casa, a porta do apartamento estava entreaberta. Um som baixo, um gemido suave, flutuou pelo corredor até alcançá-la. Não era um som de dor. Era um som de prazer.
Clara parou, a chave ainda na mão. Seu coração, que ela pensava já estar morto, deu um salto doloroso. Ela caminhou lentamente, os pés descalços no piso frio, seguindo o som até a porta entreaberta do quarto deles.
Lá dentro, Heitor estava na cama. E não estava sozinho. Uma mulher, com os cabelos espalhados pelo travesseiro que pertencia a Clara, estava em seus braços. Heitor beijava o pescoço dela, as mãos dele explorando o corpo dela com uma familiaridade que fez o estômago de Clara revirar.
Choque. Dor. Um sentimento avassalador de traição a inundou. Mas, por baixo de tudo, uma estranha camada de alívio se formou. Talvez isso tornasse as coisas mais fáceis.
Heitor a amava. Clara sabia disso. Ou pelo menos, ele a amou um dia. Ela se lembrou de quando eles se conheceram na faculdade. Heitor era pobre, um rapaz esforçado que fazia de tudo por ela. Ele trabalhou em dois empregos para poder comprar o vestido que ela queria para o baile de formatura. Ele vendeu sua coleção de livros raros para pagar a cirurgia de emergência da mãe dela. Ele a segurou nos braços durante noites inteiras quando ela tinha pesadelos, prometendo que nunca a deixaria. O amor dele era intenso, quase sufocante, mas era real.
As memórias eram como cacos de vidro em sua mente, brilhantes e dolorosas. O passado feliz tornava o presente ainda mais cruel.
Tudo mudou no dia em que ela recebeu o diagnóstico. A imagem do rosto devastado de Heitor quando ela contou a verdade ainda a assombrava. Ele chorou, implorou aos médicos, prometeu que encontraria uma cura, que gastaria cada centavo que não tinha para salvá-la. Foi nesse momento que Clara tomou sua decisão. Ela não podia deixá-lo destruir a própria vida por uma causa perdida.
O rompimento foi brutal. Ela o orquestrou para ser o mais doloroso possível. "Eu nunca te amei de verdade, Heitor," ela disse, a voz fria como gelo, enquanto ele a olhava com os olhos cheios de lágrimas e confusão. "Eu só estava com você porque você era útil. Agora você não é mais." Cada palavra era uma faca que ela cravava no coração dele, e no seu próprio. Ela o acusou de ser pobre, de não ter ambição, de ser um fardo. Ela o destruiu para que ele a odiasse, para que ele a esquecesse e seguisse em frente.
E ele seguiu. Nos anos que se passaram, Heitor, movido pela raiva e pela dor, transformou-se. Ele fundou uma empresa de tecnologia que se tornou um império. Ele ficou rico, poderoso, o tipo de homem que ela o acusou de nunca ser. E então, ele voltou. Voltou não com amor, mas com vingança. Ele a encontrou, a encurralou e a forçou a um casamento que era uma prisão. Ele a queria por perto para poder torturá-la, para fazê-la pagar por cada palavra cruel que ela disse.
Ele a humilhava constantemente, a tratava como um objeto, trazia outras mulheres para a casa deles, certificando-se de que Clara visse, que ouvisse. Ele queria quebrá-la.
Clara encostou-se na parede fria do corredor, ouvindo os sons que vinham do quarto. Uma lágrima solitária escorreu por seu rosto. Ele não sabia que ela estava morrendo. Ele não sabia que sua vingança era inútil. Ela já estava quebrada, e o tempo estava se esgotando.
"Heitor," ela sussurrou para o silêncio do corredor, a voz embargada. "Você não precisa mais fazer isso. Eu não tenho muito tempo."
Mas ele não podia ouvi-la. Ele estava ocupado demais se vingando de uma mulher que já não existia mais.