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Após 10 anos morando no estrangeiro, Roberto finalmente
estava em solo brasileiro. Primeiro, numa breve escala no Rio
de Janeiro, onde, ainda no avião, ele contemplava maravilhado
a imagem do Cristo Redentor, o Corcovado. Depois, no seu destino final: Aeroporto Internacional de Goiânia, a capital onde,
mais uma vez, esse brazuca sonhador tentaria encontrar seu verdadeiro amor, apostando suas últimas fichas em Amanda, garota
que ele só conhecia pelo computador.
"O amor é a sabedoria dos loucos e a loucura dos sábios"13,
pensou ele ao se aproximar da senhora que segurava um cartaz
onde constava o nome do rapaz: "ROBERTO, SEJA BEM-VINDO! AMANDA E FAMÍLIA". Depois dessa, ele ganhou o dia!
- Dona Lúcia!!! – saudou ele a mulher que devia ter seus
cinquenta e tantos anos; alta, robusta, rosto arredondado sob
óculos de aros grossos, cabelos castanhos estilo Chanel e visível
verruga na testa.
- Roberto, meu querido! Como está se sentindo? – perguntou a senhora, abraçando o rapaz com certa intimidade.
- Um pouco desambientado, mas estou bem – respondeu ele.
- Isso é natural. Vamos. Tem um carro nos esperando lá
fora. Onde estão suas malas?
- Não as trouxe... – respondeu o rapaz, um pouco desajeitado, já que o encontro com Amanda não fora planejado.
- Não se acanhe, por favor. Quando eu era jovem, também
já fiz minhas loucuras de amor.
Agora mais descontraído, Roberto perguntou:
- E Amanda, melhorou?
- Melhor que veja com seus próprios olhos.- Espero que não seja nada grave.
- Não precisa se preocupar. Ela foi diagnosticada com um
simples transtorno, algo fácil de tratar.
- Nossa! Será por quê?
- Ah, meu querido... coisas inexplicáveis do ser, mas nada
que um pouco de repouso não possa resolver. – disse Lúcia, enquanto cruzavam o saguão do aeroporto.
- Ela tem dormido bem?
- Praticamente o dia todo, sob efeito de medicamentos;
dorme igual um bebê, mas, quando está acordada, vira a madrugada vendo TV.
Roberto ficou visivelmente preocupado com aquela informação. Permaneceu em silêncio, ensaiando uma indagação.
Chegando do lado de fora, estava prestes a fazer uma pergunta
bem direta, quando percebeu uma verdadeira comitiva à sua espera. Encostados em um veículo Opala 1978, estavam um homem forte, alto e cabeçudo, trajando uniforme de metalúrgico,
abraçado a uma moça, morena clara de cabelos pretos, esbelta
em uma calça justa de cintura alta; um passo a frente, uma garota gordinha vestida com camisa do Goiás Esporte Clube, baixa
estatura, espinhas no rosto e piercing no nariz exposto. Não obstante, ao vê-la sorrindo gentilmente, Roberto logo abandonou
seus pensamentos de preocupação, enquanto Lúcia prontamente
os apresentou com incontida satisfação:
- Roberto! Estes são meu irmão Carlos, o Carlão, sua namorada Rafaela, e minha sobrinha, Dirce.
- Oi, gente! – disse Roberto apertando a mão de Carlão e,
depois, a de Rafaela; por último, abraçou Dirce com um pouco
mais de liberdade.
- Acredito que ocê e a Dirce já devem de ter se falado
– comentou Lúcia, ao assumir o volante do antigo carro com
Roberto ao lado.
- Claro que sim! Dirce, a prima e confidente da Amanda...- ...E futura madrinha de casamento! – completou a moça,
animadíssima.
Já estavam em pleno trânsito caótico da cidade e o assunto
voltou a ser Amanda. Dessa vez, Roberto finalmente fez a pergunta que tanto ensaiara:
- A senhora falou que Amanda tem dormido sob o efeito
de medicamentos... Confesso que fiquei preocupado.
- Ora, pois, a coitadinha surtou feio... Felizmente, levamos ela a um bom psiquiatra – disse Lúcia.
- Estou surpreso com esse relato – ponderou Roberto. –
Afinal, fora o seu recente problema de insônia, Amanda sempre
me pareceu uma pessoa saudável...
- Pois é, menino, ela ficou assim de repente... pegou nóis
de surpresa.
- Ela tem plano de saúde?
- Infelizmente não. Isso, no Brasil, é pra gente endinheirada. Recebemos ajuda de uma associação.
- Que bom que existem pessoas boas neste mundo.
- Oh, bota boas nisso. Até cadeira de rodas eles deram pra
Amanda.
Roberto engoliu em seco. Lúcia voltou-se para a sobrinha
e perguntou:
- Por falar nisso... ô, Dirce... cê deu banho na Amanda,
hoje?
- Deu tempo não, tia...
Roberto quase pulou do banco.
- Um momento, dona Lúcia! Eu não sabia que o estado da
Amanda era tão grave! Pelo que a senhora me disse, ela sofreu
um simples transtorno...
- Exatamente... – começou Lúcia, explicando com voz
tranquila e serena. – Transtorno que a acompanha desde o dia
em que a pobrezinha nasceu... e piorou com esse namoro doceis
pela internet – finalizou com um "goianês" bem acentuado.- Por que não me falou isso antes? – questionou Roberto, sério.
- Sabe por quê, Roberto? – continuou Lúcia, dirigindo
tranquilamente, agora em uma via expressa – Eu, como mãe e
criatura do sexo feminino, sei que nada completa tanto uma mulher quanto o fervor de um amor correspondido, mesmo sendo a
distância! Então, apesar de achar que o romance doceis não iria
dar em nada, fiz vista grossa, deixei seguir.
- Por quê?
- Por não querer ver minha filha chorando pelos canto por
um amor não correspondido.
- Me desculpe, dona Lúcia! Mas quem ama de verdade
não mente dessa maneira.
- No amor e na guerra, vale tudo, meu rapaz.
- Sobretudo quando há interesses – espetou Roberto.
- Você está redondamente enganado. Minha filha não está
interessada em dinheiro, posição social, carro ou qualquer uma
dessas porcarias materiais; a ela isso de nada adiantará. Amanda
está paralisada da cintura pra baixo desde que nasceu, não fala,
e seus únicos momentos de felicidade são as horas em que passa
diante do computador, teclando com pessoas que sequer conhece, as quais imaginam que ela seja o protótipo da garota perfeita;
da mesma maneira que você a idealizou. Dessas garotas que só
existem no mundo virtual, lindas por fora, incrivelmente interessantes por dentro, descontraídas, saudáveis, corpos perfeitos;
donas de uma felicidade absoluta capaz de causar inveja às mais
perfeitas criaturas dos contos de fadas... Garotas que parecem
nunca ter sofrido nem vivido qualquer tipo de problema e que
estampam em suas páginas sociais frases, selfies, caretas, caras e
bocas em lugares interessantes. Uma vida colorida, donde o preto e branco e as chagas inevitáveis da vida só aparecem quando
elas desligam o celular ou computador.
- Fui enganado... fui enganado... – Roberto repetia para
si mesmo, olhando para a densa vegetação que ladeava a viaexpressa, enquanto Lúcia seguia dirigindo tranquilamente sem
perder o foco da conversa.
- Cê não foi enganado, Roberto. Amanda é uma menina inteligentíssima! Por infortúnio, vive naquela cadeira de rodas. Não é
a bela esportista por quem você se apaixonou; não é a universitária
que morava no Setor Bueno e agora faz estágio naquela empresa
de biomedicina. Na verdade, ela tem de estar todos os dias, desde
cedo, acompanhada da minha sobrinha, pedindo esmolas no farol.
E sua maior conquista na vida, desde que nasceu, foi ter conseguido
pronunciar três palavras: mãe, comida e água. Mas isso são meros
detalhes! – concluiu, dando um sorrisinho sarcástico.
- Detalhes uma ova! Isso foi um jogo de mentiras. Uma
tremenda sacanagem me fazer vir dos Estados Unidos pra cá
para descobrir que fui enganado. – Lúcia deu uma gargalhada, e
Roberto continuou ainda mais furioso: – Como fui idiota! Teclava com Amanda e falava ao telefone com outra pessoa!
Lúcia continuava gargalhando ainda mais, agora com os
ocupantes do banco de trás fazendo-lhe coro.
Sentindo-se como um palhaço de circo que acabara de levar
uma torta na cara, Roberto perguntou:
- Mas, vem cá, como a Amanda ficava sabendo do nosso
assunto ao telefone para continuar teclando depois?
- Colocávamos no viva-voz. Amanda ouvia tudo e ficava
encantada com suas histórias. Você é uma pessoa interessante,
Roberto! Já pensou em ser escritor?
- Olha aqui, dona Lúcia, não achei graça nenhuma nessa
história. Então, antes de me deixar na próxima parada, responda
somente uma coisa: quem falava comigo ao telefone?
- Você quer saber mesmo?... Ela está bem atrás de você.
- Dirce?!
- Isso mesmo – confirmou Dirce, apontando uma arma na
direção de Roberto. – Bem-vindo de volta ao Brasil! Agora abaixa a cabeça, seu otário, que a gente vai dar um passeio.