"Amor?" Eu quase cuspi a palavra. "A senhora chama aquilo de amor? Humilhar a mulher que ele ia casar na frente de todo mundo? Me acusar de ser uma golpista no dia do nosso casamento? Ficar com a minha assistente? Isso é o amor da família Moraes?"
A cada pergunta, eu via um pequeno recuo nela. Mas a arrogância era um hábito antigo.
"Ele estava confuso! Patrícia o envenenou! Ela inventou histórias, mostrou provas falsas... ele não sabia o que estava fazendo. Ele se arrepende todos os dias, Sofia. Todos os dias."
"Que bom para ele." Eu disse, friamente. "Arrependimento é uma coisa ótima. Talvez ele aprenda alguma coisa com isso."
Meu pulso estava firme. A presença de Lucas ao meu lado e o peso de Miguel nos meus braços eram minha âncora. Eu não era mais a garota de vinte e poucos anos, apaixonada e ingênua, que tremia diante da matriarca dos Moraes. Eu era uma mulher, uma esposa, uma mãe. E eu estava na minha casa.
Lembrei-me de conversas que tive com ela, anos atrás, na sua mansão em São Paulo. Ela nunca foi abertamente hostil. Era pior. Era uma manipulação suave, venenosa.
"Querida, essa sua paixão pela cozinha é... adorável," ela me disse uma vez, enquanto servia um chá em xícaras de porcelana fina. "Mas você entende que, como esposa do Pedro, suas responsabilidades seriam outras, não é? A sociedade, os eventos de caridade, a imagem da família... ser chef é um trabalho tão... braçal."
Na época, eu sorri e disse que daria um jeito de conciliar tudo. Eu era ingênua. Eu não via que ela não estava preocupada com a minha felicidade, mas sim com a forma como eu me encaixaria no molde que eles tinham para a "esposa de um Moraes" . Eu era um acessório que precisava ser polido. Minha carreira, meus sonhos, eram apenas "adoráveis" , um hobby que eu deveria abandonar quando a vida de verdade começasse.
E Pedro, influenciado por ela e pela pressão do nome da família, começou a ecoar esses pensamentos. "Mãe tem razão, amor. Você não vai precisar trabalhar. Eu posso te dar tudo."
Ele não entendia. Nunca entendeu. Eu não queria que ele me desse tudo. Eu queria construir junto com ele. Eu não queria ser uma dona de casa entediada que organizava jantares. Eu queria ser uma chef. Era quem eu era.
A humilhação no altar não foi o começo do fim. Foi apenas o final público de um processo de anulação que já acontecia há meses, nos bastidores, pelas mãos de Patrícia e com a conivência silenciosa de sua família.
"Ele está sofrendo," Dona Clara disse, sua voz me puxando de volta para o presente. "A empresa de café está quase falindo desde que a verdade sobre Patrícia veio à tona. Ela o roubou, Sofia. Ela o usou e o descartou. A reputação dele está destruída. Ele não sai de casa. Ele só chama o seu nome."
Uma parte de mim, uma parte muito pequena e antiga, sentiu uma pontada de algo que poderia ser pena. Mas foi engolida por uma onda de justiça fria.
Ele estava provando do próprio veneno. A humilhação pública. A ruína profissional. A traição. Eram as mesmas coisas que ele me fez passar. A única diferença é que eu me reergui. Eu não deixei a dor me definir. Eu usei a dor como combustível para criar uma vida nova, uma vida real, com amor de verdade.
Lucas, sentindo a tensão, apertou levemente meu ombro.
"Amor, acho que o Miguel está com frio. Vamos entrar." Era o seu jeito de dizer: "Acabe com isso."
Eu assenti. Olhei para Dona Clara uma última vez. A mulher poderosa parecia pequena e desesperada.
"Eu sinto muito pelo seu filho, Dona Clara. De verdade. Mas a salvação dele não está aqui. Nunca esteve. A felicidade que eu tenho hoje foi porque eu o deixei para trás. Se ele quer se salvar, ele precisa fazer o mesmo."
"Você não pode fazer isso!" ela exclamou, o desespero se tornando raiva. "Depois de tantos anos juntos! Vocês cresceram juntos! Você não pode simplesmente apagar tudo!"
"Eu não apaguei." Minha voz era calma, final. "Eu aprendi. Aprendi que o amor não humilha. O amor não controla. O amor não exige que você desista de quem você é. Eu aprendi isso da maneira mais difícil com a sua família. E aprendi o que é o amor de verdade com a minha."
Eu me virei, sem esperar por uma resposta. Lucas abriu a porta para mim, e eu entrei com Miguel. Ele fechou a porta atrás de nós, e o som do trinco foi como um ponto final em uma longa e dolorosa sentença.
Eu não olhei pela janela para vê-la ir embora. Eu não me importava. Fui até a cozinha, coloquei Miguel na sua cadeirinha e lhe dei um pedaço de pão de queijo.
O cheiro de café e terra molhada encheu a casa novamente. Meu perfume. O perfume da minha vida. O passado estava finalmente onde deveria estar: do lado de fora da porta.