A lâmina perfurou minha lateral. Na minha vida anterior, aquilo foi apenas o começo. Por Cristina, ele deixou que seus homens me jogassem escada abaixo. Por Cristina, ele assistiu enquanto ela profanava as cinzas da minha mãe.
E no final, os dois me assassinaram em um acidente de carro forjado, me deixando para morrer em um amontoado de metal retorcido.
Mas eu acordei. Não morta, mas na minha cama.
Exatamente um ano antes de me matarem. Desta vez, as coisas seriam diferentes. Eu tinha um plano.
Capítulo 1
Acordei com a dor fantasma de um acidente de carro. A memória era nítida, um flash brutal de metal retorcido e o rosto de Ricardo, frio e indiferente, enquanto sua nova amante, Cristina, pisava fundo no acelerador. Eles me deixaram para morrer.
Mas eu não estava morta. Estava na minha cama, na mansão de Ricardo. O sol da manhã entrava pela janela. Era um dia que eu lembrava da minha vida passada. Um dia, um ano antes do meu assassinato.
Eu havia recebido uma segunda chance.
Joguei os cobertores para o lado e me levantei, meu corpo ainda fraco por uma memória de abuso que ainda não tinha acontecido nesta linha do tempo. A determinação foi instantânea, sólida como uma rocha no meu peito. Eu não deixaria acontecer de novo.
Saí do quarto e desci a grande escadaria. Meu pai, Alberto Azevedo, estava na sala de estar, lendo o jornal. Ele ergueu os olhos e sorriu quando me viu.
- Bom dia, querida. Ricardo ainda está dormindo?
Não respondi à sua pergunta. Fui direto até ele, com as mãos cerradas ao lado do corpo.
- Pai, eu quero cancelar o noivado.
O sorriso dele desapareceu. Ele baixou o jornal, a testa franzida em confusão. Ele me olhou, me olhou de verdade, e sua expressão se suavizou com preocupação.
- Helena, o que aconteceu? Você e o Ricardo brigaram de novo?
Ele achava que era apenas mais uma briga. Ele não sabia nem da metade. Não sabia das noites em que Ricardo, em um acesso de fúria cega, atirava coisas, sua voz um rugido que ecoava na minha cabeça por dias. Ele não sabia dos hematomas que eu escondia com maquiagem.
Um tremor percorreu meu corpo. Apertei as mãos com mais força, minhas unhas cravando nas palmas. A dor física era uma distração bem-vinda da tempestade de memórias.
- Eu não aguento mais, pai. Simplesmente não aguento.
Minha voz era um sussurro rouco. Era uma resposta vaga, mas era tudo que eu podia dar a ele sem parecer louca.
Ele não insistiu, apenas me observou com olhos preocupados. Ele sabia. Devia saber de alguma coisa.
As memórias me inundaram, indesejadas e nítidas.
Eu me lembrava de Ricardo antes do acidente. Éramos amores de infância. Ele era o CEO brilhante e confiante, e eu era sua noiva orgulhosa. Nossa vida era um conto de fadas. Ele era gentil, carinhoso. Me trazia flores sem motivo e me abraçava como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo.
Então veio o acidente. Um motorista bêbado bateu na lateral do carro dele. Ele sobreviveu, mas um traumatismo craniano mudou tudo.
Ele voltou do hospital um homem diferente. O Ricardo gentil se foi, substituído por um monstro atormentado por um grave Transtorno de Estresse Pós-Traumático e Transtorno Explosivo Intermitente.
Seus ataques de raiva eram aterrorizantes. A menor coisa podia desencadeá-los. Um livro fora do lugar, uma refeição que não estava do seu agrado, uma pergunta que ele não queria responder.
Uma noite, ele quebrou meu braço. Tinha atirado uma pesada estátua de vidro, mirando na parede, mas eu me movi na direção errada.
Quando a raiva passou, ele ficou arrasado. Viu meu braço, o ângulo antinatural, e desabou no chão. Ele soluçava, batendo a própria cabeça no chão de madeira até sangrar, implorando para que eu o perdoasse. Ele parecia tão quebrado, tão cheio de auto-aversão.
E como uma tola, eu me ajoelhei ao lado dele, minhas próprias lágrimas se misturando com seu sangue.
- Está tudo bem, Ricardo. Eu não vou te deixar. Eu nunca vou te deixar.
Eu disse isso repetidamente, um mantra que selou meu destino. Eu acreditava que a doença dele era o inimigo, não ele. Eu amava o homem que ele costumava ser e estava determinada a esperar que ele voltasse.
Então a família dele contratou a Dra. Cristina Ferraz. Ela era uma terapeuta brilhante, renomada por seu trabalho com pacientes com traumatismo craniano. Ela deveria ser nossa salvação.
No início, ela parecia profissional, atenciosa. Mas logo, as coisas começaram a mudar. Ricardo passou a depender completamente dela. A palavra dela era lei.
O foco dele mudou de mim para ela.
"A Cristina diz que eu preciso de silêncio absoluto."
"A Cristina diz que suas visitas estão me estressando."
Ele começou a cancelar nossos encontros para ter sessões extras com ela. Comprou presentes caros para ela, "pelo seu excelente cuidado", ele dizia. Ele a defendia quando eu questionava seus métodos, que pareciam projetados para me isolar.
O abuso se intensificou. Cristina o provocava sutilmente, depois se afastava e observava a explosão com um olhar clínico e distante. Eu me tornei seu saco de pancadas, literal e figurativamente.
A traição final na minha vida passada foi Cristina profanando as cinzas da minha falecida mãe. Em minha dor e fúria, eu a confrontei. Ricardo entrou, viu Cristina chorando com um arranhão no braço e me espancou até eu perder a consciência. A próxima coisa que soube foi que estava no carro deles, com Cristina ao volante, um sorriso vitorioso e cruel no rosto enquanto ela nos jogava contra uma barreira de concreto.
Agora, de pé na sala de estar, a memória era tão vívida que eu quase podia sentir o cheiro de gasolina.
- Ele nunca vai te deixar ir, Helena - disse meu pai, sua voz grave, me trazendo de volta ao presente. - Você sabe como ele é. Ele é possessivo. Ele vai enlouquecer.
- Eu sei - eu disse, minha voz firme agora. - O amor dele não é amor. É uma jaula.
E eu não tinha a menor intenção de ser um pássaro engaiolado de novo. Não nesta vida.
- Eu tenho um plano - disse ao meu pai. - Mas preciso de ajuda. Alguém que Ricardo tema. Alguém que ele não possa controlar.
Havia apenas uma pessoa que se encaixava nessa descrição. Heitor Braga.
Heitor era um bilionário recluso e enigmático. Seu poder rivalizava e, de muitas maneiras, superava a fortuna da família Bastos. Ele e Ricardo eram rivais ferozes nos negócios. Ricardo o odiava com paixão, vendo-o como uma ameaça constante.
- O Braga? - Meu pai parecia cético. - Ninguém nunca o vê. Por que um homem como ele nos ajudaria?
- Ele vai - eu disse com uma certeza que surpreendeu até a mim mesma.
Porque na minha vida passada, depois que eu morri, Heitor Braga destruiu Ricardo. Ele desenterrou cada crime, cada segredo sujo da corporação Bastos e os expôs para o mundo ver. Ele fez isso por mim.
E eu me lembrei de outra coisa. Um detalhe pequeno, quase esquecido. Alguns anos atrás, em um leilão de caridade, um homem pagou anonimamente uma quantia ridícula por uma simples pulseira que eu havia doado, uma peça que minha mãe me deixou. O dinheiro foi para um hospital infantil. Mais tarde, descobri que o comprador anônimo era Heitor. Ele mandou me devolver a pulseira com um simples bilhete: "Algumas coisas são preciosas demais para serem vendidas."
Ele me amou à distância, silenciosamente, por uma década. Eu estava apostando minha vida, e a do meu pai, que esse amor era real.
- Vou pedir a ele para nos ajudar a forjar nossas mortes - eu disse, as palavras soando estranhas e drásticas na minha língua. - É a única maneira de escapar de Ricardo para sempre. Vamos sair do país e começar de novo.
Meu pai me encarou, o rosto pálido. A extremidade do meu plano finalmente pareceu fazê-lo entender a profundidade do meu desespero.
Naquele momento, o som da porta da frente se abrindo ecoou pelo corredor.
- Helena, querida, cheguei.
Era a voz de Ricardo. E ele não estava sozinho. Eu podia ouvir os passos suaves de Cristina ao seu lado.
Rapidamente, alisei a expressão do meu rosto, empurrando o terror e o ódio para o fundo do meu ser. Eu tinha que interpretar meu papel, só por mais um tempo.
Ricardo entrou, um sorriso bonito no rosto que não alcançava seus olhos. Cristina estava ao seu lado, me olhando com uma falsa inclinação de cabeça, cheia de simpatia.
- Você parece pálida, Helena - disse Ricardo, a testa franzida em fingida preocupação. - Está se sentindo mal?
- Apenas uma dor de cabeça - menti suavemente.
Ele assentiu, aceitando a mentira sem questionar. Ele se virou para Cristina.
- Cristina teve uma sessão longa hoje. A garganta dela está um pouco dolorida. Você poderia fazer um chá de mel com limão para ela, Helena? Do jeito que você faz.
Era uma ordem disfarçada de pedido. Na minha vida passada, eu teria discutido. Teria apontado que tínhamos empregados para isso. Minha rebeldia teria me rendido um tapa mais tarde, em particular.
Lembrei-me da ardência de sua mão, da frieza em seus olhos.
Eu o odiava. Odiava a visão dele. E odiava a mulher ao seu lado, seus olhos brilhando com uma vitória possessiva que ela pensava que eu não podia ver.
Desta vez, eu apenas sorri. Um sorriso calmo e vazio.
- Claro, Ricardo.
Virei-me e caminhei em direção à cozinha, sentindo os olhos deles nas minhas costas. O olhar de Cristina era afiado, surpreso com minha fácil submissão.
Que ela ficasse surpresa. Isso era só o começo.