Clara ainda segurava a arma com as duas mãos trêmulas.
Adriano se manteve imóvel, encarando a cena com uma mistura de medo e incredulidade.
- Eu... eu não queria - murmurou Clara, a voz cortada pelo choro. - Ela me provocou, Adriano, ela ia contar pra todo mundo!
- Cala a boca! - ele rosnou, passando a mão no cabelo. - Idiota! O que a gente faz agora?
A chuva engrossou, pingando do queixo dele, manchando o chão com o sangue que escorria do corpo de Amara.
Ela tentou falar, mas só saiu um sussurro.
- Por... quê?...
O olhar dela era um espelho quebrado, refletindo a confusão e o horror.
Clara recuou um passo, ofegante.
- Ela ainda está viva!
- Claro que está viva, imbecil! - Adriano se aproximou e segurou o pulso de Amara, como se conferisse o tempo de um relógio caro. - Mas não por muito tempo.
Ele respirou fundo e olhou ao redor, o cérebro girando em busca de uma saída.
- Escuta, a gente vai dizer que foi um assalto. Que o segurança ouviu um barulho e fugiu.
- Um assalto? - Clara parecia em transe. - Ninguém vai acreditar!
- Vão acreditar se eu disser. Sou o marido perfeito, lembra?
O deboche na voz dele fez Amara tossir sangue.
A cada palavra, ela sentia a vida escorrendo em ondas quentes.
Clara tremia, e o salto dela raspava no piso molhado.
- Adriano, eu não quero ir pra cadeia...
- Ninguém vai. - Ele olhou para o corpo da esposa e baixou o tom. - Vamos acabar com isso.
Amara tentou se arrastar, mas o corpo não respondia.
- A... Adriano... - o nome saiu rasgado, quase sem som.
Ele se agachou perto dela e falou baixo, frio:
- Você devia ter ficado calada.
O ódio na voz dele era antigo, escondido sob anos de falsos sorrisos.
Amara fechou os olhos, incapaz de acreditar que aquele era o homem que dissera "para sempre" no altar horas antes.
Clara se ajoelhou ao lado, o choro agora sem disfarce.
- Eu te juro, eu não queria, Amara... foi um acidente!
- Um acidente é tropeçar - ela sussurrou, o olhar enevoado. - Não apontar uma arma.
A amiga desviou o rosto, culpada e covarde.
Adriano se levantou, impaciente.
- Chega, Clara. Vamos sair daqui.
Quando ele puxou a amante pelo braço, a porta atrás deles se abriu com violência.
O vento entrou com a força de uma tempestade - e, junto com ele, uma voz furiosa:
- O que vocês fizeram?!
Ezequiel Alves estava na porta, molhado da chuva, o rosto em choque ao ver o chão coberto de sangue.
Os olhos dele foram direto para o corpo de Amara, imóvel.
- Amara! - gritou, correndo até ela.
Clara recuou de imediato, escondendo a arma atrás das costas.
Adriano ficou entre os dois, o olhar frio e arrogante.
- O que faz aqui, motoristazinho? - o tom gotejava desprezo. - A festa acabou.
Ezequiel ignorou. Ajoelhou-se ao lado de Amara, tocando o rosto dela com as mãos tremendo.
O sangue manchou os dedos dele.
- Por Deus... o que fizeram com você? - sussurrou.
Amara moveu os lábios, tentando dizer algo, mas apenas um som rouco saiu.
Clara, agora histérica, deu um passo à frente e gritou:
- O que você fez, Ezequiel?! Você matou Amara!
Ele se virou de súbito, incrédulo.
- O quê?
- Foi ele! - Clara apontou, desesperada. - Entrou aqui gritando, ela tentou impedir e ele atirou!
- Cala essa boca, Clara! - Adriano rosnou, mas o olhar dele se iluminou com a ideia.
Ele entendeu rápido.
- É isso mesmo. Foi ele. - A voz soou calma, quase ensaiada. - Eu sou o marido em luto. Você, o amante rejeitado.
Ezequiel se levantou, o peito arfando.
- Vocês perderam o juízo.
- Não - disse Adriano. - Só estamos aproveitando a oportunidade.
Clara jogou a arma no chão, o rosto banhado em lágrimas.
- A arma dele, Adriano! As impressões... estão nele agora!
Adriano sorriu.
- Perfeito.
Ezequiel olhou para os dois, incrédulo, e sentiu o estômago revirar.
- Vocês são doentes.
Ele deu um passo à frente, mas Clara puxou de volta a arma, apontando diretamente para o peito dele.
- Fica aí! - gritou. - Não se mexe!
O som da chuva batendo no metal era o único ruído.
O corpo de Amara entre eles - frágil, quase sem vida.
Ezequiel olhou pra ela, o coração rasgando, e falou baixo:
- Aguenta, minha menina... eu tô aqui.
Clara mordeu o lábio, o dedo tremendo no gatilho.
- É melhor sair daqui agora, Adriano. A polícia vai aparecer.
- Vamos. - Ele segurou o braço dela. - Ele que se explique depois.
Ezequiel deu um passo à frente, e Clara, no impulso, atirou.
O tiro pegou no ombro dele.
O impacto o fez cair de lado, mas a raiva foi mais forte que a dor.
Ele se levantou, o sangue escorrendo pelo braço, os olhos ardendo.
Adriano e Clara recuaram até a porta.
- Vocês não vão sair daqui vivos. - A voz de Ezequiel era um trovão.
A chuva invadiu o terraço, o vento soprando as cortinas como se o céu inteiro observasse a tragédia.
O sangue escorria pelo braço dele, quente como raiva.
Ezequiel encarou os dois, a chuva batendo no rosto, o vento arrastando o véu de Amara como uma bandeira de rendição.
- Vocês não vão sair daqui vivos.
A voz dele soou grave, o trovão respondeu.
Ele partiu pra cima de Adriano, o corpo movido por puro instinto.
- Seu desgraçado! Ela confiou em você!
Adriano tentou rir, mas a voz falhou.
- E daí, motoristazinho? Sempre teve inveja, não é? Amara nunca te viu. Nunca te enxergou!
O soco veio antes que a frase terminasse.
Ezequiel acertou o rosto dele com força, o estalo seco ecoando entre os trovões. Adriano cambaleou, tropeçou nas próprias pernas e caiu.
Clara gritou, histérica, o vestido colando no corpo molhado.
- Eu vou te matar, seu desgraçado! - apontou a arma, as mãos tremendo. - E ainda vou sair como heroína!
Ezequiel correu. Rápido demais pra hesitar, rápido demais pra pensar.
A arma disparou, a bala passou de raspão, o som misturou-se ao vento.
Ele a alcançou, a derrubou no chão, a arma deslizando pelo piso molhado.
- Larga isso! - rugiu.
Clara ainda tentou se levantar, os olhos arregalados, o rosto pálido de medo.
- Você é um ninguém! - gritou, a voz rachada. - E vai morrer como um!
Ela estendeu a mão pra pegar a arma caída, mas Ezequiel a empurrou.
O corpo dela bateu na borda do parapeito com um som oco - o impacto seco, o silêncio logo depois.
A cabeça dela tombou pro lado, o sangue misturando-se à chuva.
Adriano se ergueu cambaleante, o rosto coberto de sangue, o olhar de fera.
Correu pra pegar a arma, mas Ezequiel foi mais rápido.
Um disparo.
Depois outro.
O corpo de Adriano girou, lento, e caiu de costas no chão encharcado.
O sangue se misturou à água, e o barulho da chuva cobriu o último suspiro dele.
Ezequiel ficou ali, respirando como se o ar queimasse.
Os olhos dele varreram os corpos, o cenário, a tragédia inteira - e então voltaram pra ela.
Amara.
Ela ainda estava ali. Fraca, quase imóvel, o olhar perdido no céu.
Ele correu até ela, caindo de joelhos, as mãos tremendo quando tocaram o rosto frio.
- Eu vou te levar pro hospital, meu amor... - sussurrou, desesperado. - Aguenta, por favor...
Ela tossiu, e o sangue manchou os lábios.
O som foi pequeno, o suficiente pra dizer que ele já sabia: não dava tempo.
Ezequiel ficou em silêncio por um segundo, o mundo inteiro preso no peito.
Depois, encostou a testa na dela.
- Eu sempre te amei, Amara... - a voz dele saiu baixa, quebrada. - Sempre. Desde que éramos crianças. Eu via você nos jardins e achava que o sol nascia onde você pisava.
A chuva caía entre eles como véu, e ele continuou:
- Eu nunca quis mais do que te ver sorrir. Eu achava que bastava isso, te ver feliz, mesmo que não fosse comigo. E era verdade, até hoje. Mas agora... agora eu trocaria a minha vida pra te dar mais um minuto de respiro.
O sangue dela manchava as mãos dele, e mesmo assim ele a segurava como se pudesse aquecê-la.
Amara não respondeu.
Mas moveu os dedos, fracos, e tocou o rosto dele.
Passou o polegar sob o olho, enxugando as lágrimas que caiam junto da chuva.
E sorriu.
Um sorriso calmo, bonito, que doeu mais do que qualquer ferida.
Os lábios dela se moveram devagar, quase sem voz:
- Zico...
O apelido de infância saiu como um sopro.
O coração dele parou.
A mão dela caiu, o sorriso ficou.
- Não... não, por favor... - Ezequiel sussurrou, tentando acordá-la, beijando a testa, os lábios, o rosto. - Fica comigo, só mais um pouco. Eu imploro.
Mas o corpo dela já estava leve demais.
Ele chorou com a cabeça no colo dela. O vento batia nas costas, e a chuva apagava o sangue, como se quisesse esconder o crime do mundo.
Depois se levantou, trôpego, o olhar vazio.
- Vinguei tua morte, amor... murmurou, olhando o corpo dela. - Não me rejeita na outra vida.
Deu dois passos até o parapeito.
O vento o empurrou, o trovão respondeu.
Olhou pra trás uma última vez o corpo de Amara, sereno, o vestido ainda branco nas partes que a chuva poupou.
Ezequiel sorriu entre lágrimas.
- Eu venho te encontrar.
E pulou.
O som da queda se perdeu na tempestade, mas o grito dela ficou preso no vento.