Capítulo 4

Na manhã seguinte, o escritório parecia estranhamente distante, como se eu o estivesse vendo através de um vidro grosso. Eu me movia mecanicamente pelas tarefas da minha transição final, cada tarefa um passo mais longe da vida que eu conhecia. Minha mesa, antes um santuário de palavras e ideias, agora era apenas uma coleção de objetos esperando para serem empacotados.

Heitor apareceu uma hora antes da minha partida programada, segurando desajeitadamente uma caixa de papelão nos braços. Ele parecia... diferente. Sua camisa habitual impecável estava levemente amassada, os olhos um pouco vermelhos.

- Adriana - disse ele, a voz mais suave do que o normal, um toque de algo que eu não conseguia identificar em seu tom. - Trouxe isso para o Léo. Pelo aniversário dele. Eu... eu sei que ontem foi um desastre. Queria compensá-lo.

Ele estendeu a caixa. Era um pacote grande e colorido, claramente um brinquedo de criança. Um lampejo de esperança, tão fraco que mal existia, mexeu comigo. Talvez, apenas talvez, ele estivesse finalmente tentando.

- Obrigada, Heitor - disse eu, minha voz cuidadosamente neutra.

Peguei a caixa, o peso surpreendentemente leve. Rasguei o papel de embrulho. Dentro, aninhado em uma cama de papel de seda, estava um cachorro de pelúcia fofo, em tamanho real. Um golden retriever com olhos grandes e amigáveis.

Minha respiração travou na garganta. Minhas mãos tremeram. Uma onda de fúria gelada me invadiu, tão potente que quase me fez derrubar a caixa. Ele não sabia nada sobre o filho? Ele realmente não se lembrava de nada?

Léo, quando tinha apenas três anos, foi atacado pelo cachorro de um vizinho. Um incidente aterrorizante e traumático que o deixou com um medo profundo e paralisante de todos os cães. Ele gritava e chorava se visse um até na TV. Por meses, trabalhei incansavelmente para ajudá-lo a superar o trauma, mas o medo ainda espreitava, uma sombra em sua jovem vida.

E Heitor, o pai dele, tinha acabado de lhe dar um cachorro de pelúcia.

Engoli em seco, forçando a raiva de volta para baixo, para o fundo do meu estômago. Meu rosto permaneceu impassível.

- É... atencioso, Heitor - consegui dizer, minha voz inexpressiva.

Ele franziu a testa, um lampejo de confusão nos olhos.

- Atencioso? Ele adora cachorros, não adora? Todas as crianças adoram cachorros.

Simplesmente o encarei, incapaz de falar, incapaz de articular a profundidade de sua ignorância, seu completo distanciamento do próprio filho. Ele não tinha apenas esquecido o aniversário de Léo; ele tinha esquecido o Léo.

Ele pareceu interpretar meu silêncio como aceitação. Limpou a garganta.

- Bom. Bem. Tem outra coisa que precisamos discutir, Adriana. - Ele mudou o peso do corpo, o olhar evitando o meu. - O apartamento da Karina está inabitável depois que o cano estourou. Ela precisa de um lugar para ficar.

Meu sangue gelou. Eu sabia onde isso ia dar.

- E? - incentivei, minha voz perigosamente baixa.

Ele finalmente encontrou meu olhar, uma estranha mistura de defensiva e arrogância nos olhos.

- E... bem, seria mais fácil para ela ficar na casa. Só por algumas semanas, até o lugar dela ser consertado. É temporário, claro.

Minha mente girou. Ele queria que a amante se mudasse para a nossa casa. Para a casa onde criei nosso filho. A casa da qual ele tinha acabado de me dispensar.

- E para onde exatamente - perguntei, cada palavra cortada e precisa - você propõe que Léo e eu vamos durante esse arranjo "temporário", Heitor?

Ele suspirou, como se eu estivesse sendo irracional.

- Adriana, não seja dramática. Vocês dois podem ficar com sua irmã, ou talvez em um hotel. Eu cubro os custos, claro. São só algumas semanas. É pelas aparências, você entende. Karina é minha publicitária; não pegaria bem ela ser vista ficando em qualquer outro lugar agora. E com o lançamento do livro chegando, não posso me dar ao luxo de distrações.

Meu queixo caiu. Ele estava nos expulsando. Por Karina. Pelas "aparências" dele. Por sua mentira cuidadosamente elaborada. Era uma crueldade tão flagrante, tão totalmente desprovida de humanidade, que roubou meu fôlego.

- Você quer expulsar sua esposa e seu filho de casa - declarei, as palavras com gosto de cinzas - para que sua amante possa se mudar?

Ele recuou.

- Ela não é minha amante! E você não é minha esposa, não oficialmente. Nosso casamento é um segredo, lembra? Um acordo privado. Algo que você sempre insistiu. - Ele cuspiu as palavras, distorcendo a narrativa, fazendo parecer que eu era a manipuladora.

Uma risada amarga escapou dos meus lábios. A pura audácia. Ele sempre foi quem insistiu no segredo, para proteger sua imagem, para me manter escondida. E agora estava usando isso contra mim. A máscara de charme finalmente se estilhaçou, revelando a verdade feia por baixo. Ele não apenas explorou meu talento; ele distorceu minha realidade, deformando memórias para se adequar à sua narrativa egoísta.

Olhei para ele, realmente olhei para ele, e não vi o homem que amei, mas uma casca oca de arrogância e engano. Não havia mais nada pelo que lutar. Nada para salvar.

- Tudo bem - disse eu, minha voz assustadoramente calma. - Eu entendo. Estaremos fora até o final da semana.

Minhas palavras pairaram no ar, pesadas com uma finalidade que ele, em sua autoabsorção, perdeu completamente.

Ele piscou, surpreso com minha rápida aquiescência. Ele esperava uma briga, lágrimas, um apelo dramático. Ele esperava que eu implorasse.

- Ótimo - disse ele, um sorriso aliviado se espalhando pelo rosto. - Eu sabia que você entenderia. Vou garantir que você seja compensada pelo inconveniente, Adriana. Você não vai se arrepender.

Não dignifiquei aquilo com uma resposta. Não havia nada que ele pudesse oferecer que compensasse sete anos da minha vida, meu talento, meu coração e a infância do meu filho, tudo sacrificado no altar do ego dele. Meu silêncio foi minha resposta. Meu silêncio foi meu adeus.

            
            

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