Anderson, é claro, não entenderia. Ele a via como lixo, mais um pedaço dos "meus" pertences feios a serem descartados. Ele não conseguia entender o conceito de valor sentimental, não quando não vinha com uma etiqueta de preço pesada ou um nome poderoso. Ele era cego para qualquer coisa que não se encaixasse em sua visão estreita e transacional do mundo.
A boneca, jogada descuidadamente, caiu com um baque nauseante, rolando para debaixo da boca aberta da caçamba de lixo. Seu rosto de porcelana lascado, já desbotado, agora parecia me encarar em silenciosa reprovação. Estava enterrada sob uma pilha de papelão e plástico descartados, perdida para sempre. Assim como eu. Assim como minha esperança.
"O que você está fazendo, Ayla?" A voz de Anderson cortou meu torpor, afiada e imperiosa. Ele se aproximou, seu olhar frio fixo em mim, exigindo respostas.
Eu me encolhi, virando-me para encará-lo. Minha máscara de indiferença cuidadosamente construída vacilou. Meus lábios se separaram, mas nenhuma palavra saiu. Minha garganta estava apertada, sufocada por uma dor não dita. Tentei forçar um sorriso, um gesto praticado de obediência, mas parecia estranho em meu rosto, uma careta de dor.
Rapidamente estendi a mão, enlaçando meu braço no dele, forçando intimidade. "Anderson, você me chamou. Vim o mais rápido que pude." Minha voz era leve, leve demais, uma tentativa desesperada de parecer não afetada. "Fui rápida o suficiente?" A ânsia fingida, a necessidade desesperada de agradar, era uma performance familiar.
Ele apenas grunhiu, um som não comprometedor. Seu olhar se desviou para a caçamba, depois de volta para o meu rosto. "Certifique-se de não deixar nada para trás, Ayla. Absolutamente nada." Sua voz era baixa, carregada de uma finalidade arrepiante.
Minha mão, enlaçada em seu braço, ficou rígida. Eu quase podia sentir o peso da boneca da minha avó, enterrada no fundo do lixo. Engoli em seco, meus olhos se desviando para a caçamba, um adeus silencioso. "Claro, Anderson. Nada será deixado." Minha voz era quase um sussurro. Eu garantiria que nenhum vestígio de mim permanecesse, nenhum cheiro persistente, nenhum item esquecido. Eu me tornaria um fantasma.
Ele não passou a noite. Ele nunca o fazia depois desses tipos de episódios. O apartamento, mais uma vez, era só meu, mas parecia oco, estéril. Alguns dias depois, uma entrega chegou. Caixas de roupas de grife, joias caras, uma bolsa nova. Todas as coisas que ele sabia que eu cobiçava, as coisas que ele acreditava que eu valorizava. Marcos, seu assistente, as apresentou com um sorriso rígido. "O Sr. Vasconcellos disse que são para sua formatura, Ayla. Um presente."
Minha formatura. Certo. Meu contrato estava terminando. Isso não era um presente; era um pagamento de rescisão. Um adeus dourado. Ele estava comprando meu silêncio, minha partida fácil, envolvendo-o em seda e pedras preciosas. Ele queria garantir que eu fosse embora sem confusão, sem uma única queixa.
"Por favor, agradeça a ele por mim", eu disse, minha voz cuidadosamente neutra. "E onde ele está, Marcos? Não o vejo desde..."
Marcos hesitou, depois pigarreou. "O Sr. Vasconcellos estendeu sua viagem de negócios para acompanhar o concerto da Sra. Vasquez em Paris. Ele estará presente com ela."
Meu estômago afundou, um nó frio e duro. Paris. Com Esperança. Claro. Seria a última vez que eu o veria. A última vez que eu seria dele. Ele não voltaria antes do fim do meu contrato. Forcei um sorriso. "Entendo. Bem, espero que ele goste do concerto."
Naquela noite, fiz algo que sabia ser tolo. Comprei um ingresso para a apresentação de Esperança Vasquez em Paris. Um assento pequeno e caro na última fila. Eu precisava ver. Precisava testemunhar o ato final desta peça, observá-lo olhar para ela sob as luzes brilhantes, para cravar o último prego no caixão da minha tola e persistente esperança.
No dia seguinte, sentada em uma cafeteria movimentada perto da USP, Kaila estava animada, reclamando de um novo cientista de dados genial que acabara de se juntar ao nosso projeto de pesquisa. "Sério, Ayla, ele é brilhante, sim, mas é tão quieto, tão intenso. E ele já me fez sentir como uma idiota duas vezes. Caleb Fleming. Já ouviu falar dele? Vem de alguma família acadêmica chique, aparentemente."
Eu ri, mexendo meu latte. "Pobre Kaila. Parece que você encontrou seu par."
"Ele não é meu par, ele é meu nêmesis! Então, falando em nêmesis, o que você vai fazer neste fim de semana? Você não vai mesmo voar para Paris, vai?" Kaila perguntou, suas sobrancelhas erguidas.
"Vou", admiti, um leve rubor subindo às minhas bochechas. "Esperança Vasquez vai tocar. Eu... eu quero ver o show."
Kaila revirou os olhos. "Ah, Ayla. Por que se submeter a isso? Ela é uma pianista terrível, de qualquer maneira. Só exibicionismo, sem substância. Assim como seu gosto para homens."
Fiquei em silêncio, a conversa alegre da cafeteria desaparecendo ao meu redor. Kaila estava certa. A música de Esperança era tecnicamente brilhante, mas emocionalmente vazia. E eu sabia, no fundo, que ir a este concerto era um ato masoquista. Era o passo final para me desapegar. Um exorcismo doloroso. Mas eu precisava. Precisava vê-lo, vê-los, uma última vez, para entender completamente que eu estava fazendo a escolha certa. Minha fuga dependia disso. Eu tinha que me livrar deste último e tolo pedaço do meu coração. Eu tinha que vê-lo escolhê-la, publicamente, inequivocamente.
O voo para Paris foi longo, a antecipação uma pulsação surda no meu peito. Cheguei à sala de concertos assim que as luzes estavam diminuindo. Deslizei para o meu assento na última fila, meu coração martelando. A sala estava lotada, um mar de rostos elegantes, todos esperando por Esperança Vasquez. Vasculhei as fileiras, meu olhar procurando, procurando... e então eu o vi. Anderson. Quinta fila, centro. Inconfundível.