Mamãe teria odiado esse silêncio. Papai teria mandado servir mais chá, só para ter um pretexto para falar. Mas eles não estavam ali.
Estavam... ali na frente. Em duas urnas brilhando sobre seda vermelha.
Eu olhei para as cinzas e tentei entender como duas pessoas tão grandes cabiam em recipientes tão pequenos. Não fazia sentido, nada fazia.
Quis chorar. Mas aprendi cedo demais que um Takayama não chorava.
Os anciãos estavam de cabeça baixa. Os guerreiros olhavam para frente com os rostos duros. Ninguém fazia perguntas. Ninguém dizia "por quê?". Ninguém perguntava "quem fez isso?". Parecia que todo mundo sabia, e eu era a única sem o mapa.
"Na nossa família, a dor não se mostra, ela se jura."
Talvez fosse verdade, mas eu ainda era pequena demais pra jurar. Tudo o que eu sabia fazer era sentir.
Foi então que eu o vi.
Ele estava um pouco afastado, mas perto o bastante do altar para que fosse importante. Não usava símbolos, não tinha emblemas, não tinha nada que dissesse quem ele era, mas não precisava. Porque o silêncio em volta dele era diferente.
Não era o silêncio triste dos outros, nem o respeitoso do general. Era um silêncio que parecia observar tudo e esperar o momento certo para atacar.
Usava uma Yukata preta. Os cabelos claros presos para trás. O rosto calmo demais, mas o que e chamou atenção, foram os olhos azuis.
Azuis como os meus.
Eu nunca tinha visto alguém como ele.
Mamãe tinha olhos escuros.
Papai, também.
Eu era a estranha.
Mas ele...
Ele tinha a mesma cor de céu nos olhos. Só que o céu dele não era de dia.
Era céu de tempestade.
Lembrei das histórias que mamãe contava quando eu tinha medo de dormir sozinha.
"Se um dia o mundo ficar escuro demais, Yuna, o Ceifador virá te guardar. Ele é o monstro que escolheu ficar do nosso lado."
Eu olhei de novo para o homem vestido de preto e senti que era ele. Eu não sabia como, mas sabia.
Meu coração apertou, não só de tristeza, mas de alguma coisa que eu ainda não sabia identificar. Era como... reconhecer alguém que eu ainda não tinha encontrado.
Antes que eu pensasse duas vezes, meu corpo se moveu.
Meus joelhos doeram quando saí do tatame. O quimono branco arrastou pelo chão, pesado. Cada passo parecia errado e certo ao mesmo tempo. Eu não tinha permissão, mas eu era uma Takayama.
E Takayama não pede permissão.
Peguei uma flor branca de um dos arranjos próximos. Era pequena, frágil. Vivia apesar do frio. Peguei também um doce de arroz que estava guardado na manga da minha roupa, eu tinha escondido antes da cerimônia. Mamãe dizia que coisas doces ajudavam quando o coração apertava.
O corredor de pedra parecia crescer à medida que eu andava. Senti olhares em mim. Alguns assustados, outros duros. Mas ninguém se aproximou, nem ousou me impedir.
Ele só me viu quando eu já estava perto o suficiente para tocar o tecido preto da roupa. Minha mão tremeu quando meus dedos seguraram a ponta da Yukata, ele desviou o olhar das urnas e me olhou.
Os olhos dele não pareciam surpresos, nem irritados, nem gentis.
Pareciam... atentos. Perigosamente atentos.
Por um segundo, eu poderia ter tido medo. Mas não tive.
Porque, por mais que ele se parecesse com a noite, havia algo nele que não assustava. Algo que cansava. Como se ele carregasse peso demais há muito tempo.
Ergui a flor.
- Pra quando o silêncio ficar pesado... - falei, com a voz que saiu menor do que eu gostaria.
Abri a outra mão, mostrando o doce.
- E o doce... pra quando o coração doer.
Ele me olhou como se eu tivesse dito alguma coisa que ninguém jamais tinha dito a ele.
Então, o impossível aconteceu:
O Ceifador se ajoelhou diante de mim. Não por causa da minha idade, nem por causa da tradição, mas por causa da dor.
Pegou a flor primeiro, depois o doce. Os dedos dele eram grandes, fortes, mas seguravam as coisas pequenas com um cuidado que eu só tinha visto em papai, quando ele segurava meus brinquedos favoritos para consertar.
- Eu sei quem você é - eu disse.
Ele perguntou:
- Sabe?
Assenti.
- Mamãe dizia que, quando o mundo ficasse escuro demais... o Ceifador viria nos guardar.
Os olhos dele mudaram um pouco. Só um pouco. Como se alguém tivesse acendido uma vela lá dentro por um segundo e apagado rápido demais.
Então, antes que eu ficasse com medo de ter dito algo errado, eu fiz o que meu coração mandou:
Eu o abracei.
Senti o corpo dele ficar rígido por um instante, como se não estivesse acostumado a contato que não fosse golpe. A yukata tinha cheiro de tecido limpo, fumaça distante e qualquer coisa quase imperceptível que me lembrava casa.
Ele não me afastou.
As mãos grandes pousaram nas minhas costas. Não pesadas, mas firmes. Como se me segurassem de um jeito que o mundo já não conseguiria derrubar.
- Eu não quero ficar sozinha... - confessei, com a voz engolindo metade das palavras.
Ele respirou fundo. O peito dele se moveu devagar contra o meu.
- Você não estará... - respondeu.
Foi simples, mas eu acreditei.
Quando me afastei, ele ainda estava de joelhos, com a flor numa mão e o doce na outra. Um homem perigoso, com armas invisíveis e um futuro que eu não entendia.
Pensei numa pergunta e deixei escapar:
- Posso te chamar de anjo?
- Sim... princesa - respondeu.
A palavra "princesa" não parecia um apelido vazio. Parecia uma promessa sem forma.
Voltei para o tatame com as pernas menos firmes do que quando levantei. O sino tocou de novo e as palavras do general voltaram fazendo o mundo continuar.
Mas alguma coisa tinha mudado.
Eu não sabia ainda que tipo de homem o Ceifador era. Não sabia quantas vidas ele tinha tirado. Não sabia que, um dia, a mão que segurava a flor seria a mesma mão que poderia segurar uma espada contra mim.
Só sabia de uma coisa:
Eu não estava mais sozinha. E, anos depois, quando meus olhos encontrassem os dele de novo, não como criança, mas como mulher eu entenderia o peso daquele momento.
Entenderia que aquele abraço foi o começo de tudo:
Do amor que não deveria existir.
Da guerra que não poderia ser evitada.
Da promessa que arrastaria os dois para o limite entre lealdade e desejo.
O Ceifador foi criado para me servir.
Treinado para matar por mim.
Preparado para morrer pelo clã.
Mas ninguém o preparou para o pior:
Me amar.
E, quando esse amor finalmente explodir, não haverá templo, juramento ou destino capaz de segurar o que vem depois.