Cada passo que eu dava ecoava fundo demais. Eu conhecia aquele lugar desde antes de saber falar. Conhecia a textura das pedras, o ritmo das orações, o corte do incenso no ar. E ainda assim... nunca o senti tão diferente. Como se o destino estivesse afiado, como uma lâmina prestes a tocar a pele.
Quando as portas do salão cerimonial se abriram, o cheiro de incenso queimado preencheu meus pulmões, aquele aroma que acompanhou treinamentos rigorosos, meditações silenciosas...
E o velório dos meus pais.
Eu entrei.
Meu tio estava sentado no centro, com uma postura firme como pedra, a expressão controlada demais para ser apenas neutralidade.
À direita, Akio. Leal, devoto, sempre ao meu lado.
Mas naquela manhã... ele não me olhou como costumava olhar. Ele me olhou como alguém que carregava uma sentença atrás dos olhos e não tinha permissão para dizê-la.
Eu me curvei.
- Bom dia, tio.
Ele não devolveu a formalidade. Quando falou, a voz não carregava emoção, carregava decisão.
- Yuna, chegou a hora de falarmos sobre sua vida fora deste templo.
Meu coração tropeçou dentro do peito.
Vida... fora?
Antes que eu respirasse, Akio desviou o olhar, como se aquilo o ferisse.
Meu tio continuou:
- Você cresceu cercada por disciplina, silêncio e tradição. Mas agora... é hora de conhecer o mundo além destas paredes. De aprender com ele. De observá-lo. De viver nele.
Eu não respondi. Não porque não soubesse o que dizer. Mas porque não sabia descrever o que estava sentindo.
- Viver fora do Japão? - consegui perguntar.
- Sim - ele respondeu, como quem anuncia algo inevitável. - Manhattan.
Manhattan...
Uma cidade que eu só conhecia por telas, mapas e cartas enviadas por Emma e Ayla, minhas amigas que fiz pela internet durante todos esses anos.
Meu tio me observava como quem mede reações, não emoções.
- Por quê? - perguntei - não resistindo, mas buscando entendimento.
Ele inspirou, como fazem homens que carregam mais responsabilidade do que palavras.
- Porque o clã precisa que você cresça além das fronteiras. O mundo que virá não será silencioso. E você precisa estar preparada para ele.
Akio apertou o punho e eu percebi que ele também tremia.
- Isso é uma honra - murmurei, porque era o que esperavam que eu dissesse.
Mas dentro de mim era estranho.
Era medo misturado com desejo, saudade misturada com liberdade.
- Você viajará em três dias - meu tio anunciou. - Os preparativos já começaram.
Três dias.
O tempo de um perfume desaparecer de um quarto, de uma memória se apagar de uma superfície. O tempo para deixar tudo para trás.
- E... - minha voz baixou - eu estarei sozinha?
Akio reagiu antes mesmo de pensar, como se a palavra sozinha fosse perigosa demais.
Meu tio respondeu:
- Não. Você será acompanhada por alguém preparado.
"Protegida?" - pensei.
A palavra se repetiu na minha mente como eco.
Protegida como quando eu era criança? Como naquele dia...?
A memória veio como vento frio.
Eu tinha seis anos.
O templo estava cheio de pessoas vestidas de preto. O céu chorava e meu mundo tinha acabado.
No canto do salão, entre os monges e o luto estava ele.
Uma figura alta, imóvel, quase sobrenatural. Não havia expressão em seu rosto, mas seus olhos azuis eram raros, profundos, impossíveis de esquecer.
Quando olhei para ele, senti algo que criança nenhuma deveria sentir:
Proteção.
Destino.
Pertencimento silencioso.
E depois daquele dia, todas as vezes que eu me encontrava, sufocada pela dor, ele estava ali.
No escuro. Parado. Vigilante. Guardando.
Eu nunca soube seu nome, mas todos o chamavam de o Ceifador.
Meu guardião invisível.
Meu fantasma vivo.
Meu luto disfarçado de segurança.
Desde então eu o sinto.
Nas noites silenciosas. Nos corredores vazios. No peso invisível que caminhava comigo.
E agora... Manhattan?
Minha respiração trincou.
- Quando devo começar a me preparar? - perguntei.
Meu tio sorriu, não feliz... apenas satisfeito.
- Já começamos.
Mais tarde, fui ao jardim interno.
Aquele lugar sempre me recebeu como se conhecesse minha dor. Ali, minhas primeiras orações viraram lágrimas. Ali, aprendi que silêncio também é resposta. O lago estava calmo, como se refletisse não o céu, mas o que eu carregava dentro.
- Eu vou deixar você para trás... - murmurei.
Não ao templo, mas para ele.
- Não sei seu nome, nem o seu passado. Tudo o que eu sei foram as histórias que minha mãe me contava quando ainda era uma criança... - fechei os olhos - mas sei que fui protegida no escuro antes de aprender a viver na luz.
As lágrimas vieram silenciosas. Não de medo, mas de despedida.
- Espero que você viva sem mim - sussurrei - mesmo que eu nunca tenha aprendido a viver sem sua presença.
O vento soprou forte, não como resposta, mas como protesto. Como se dissesse: Você está errada.
Quando voltei ao meu quarto, havia algo sobre minha cama.
Uma pulseira de couro negro.
Simples, mas o metal interno tinha uma palavra gravada:
Sempre
Meu coração disparou. Porque aquilo não era presente, era um aviso, uma promessa. Coloquei no pulso e serviu como se já fosse minha.
Quando adormeci, não tinha mais medo. Mesmo adormecida, consegui sentir uma presença preencher o quarto, silenciosa, constante, inevitável. E uma voz profunda, íntima, impossível, sussurrou dentro da minha mente:
"Você não está me deixando. Você está indo para onde eu já estou."
A escuridão me envolveu e eu sorri sem entender tudo, mas sabendo exatamente quem me dizia aquilo.