Fiz um lembrete mental a mim mesmo para recolher minhas armas ou pelo menos colocá-las em locais menos óbvios, eu não estava mais sozinho e não sabia nada de Raquel ainda. Ter uma arma em casa significava que ela poderia ser usada e não apenas por mim.
Sem me importar com regras ou etiqueta eu comi o mais rápido que pude, não tinha pressa em ir embora mas tinha fome, uma fome que me fez comer duas vezes e ainda pedir sobremesa. Fazia muito tempo que eu não sentia tanta fome, eu pulava refeições frequentemente e não tinha nenhum compromisso em manter hábitos alimentares saudáveis, a não ser quando chegava perto de ter alguma prova física na corporação.
Comer feito um búfalo deve ter assustado Raquel. Ela ainda estava em seu primeiro prato quando terminei de comer e limpei a boca em guardanapo. Mesmo tentando disfarçar seus olhos eram transparentes, eles nunca a deixariam mentir sem ser descoberta.
- Tem para você também. – Apontei a taça com uma sobremesa de chocolate que eu tinha pedido a mais.
- Obrigada. – Murmurou ela. - Você pode comer se quiser mais.
- Estou satisfeito. – Informei.
Raquel piscou, assentindo devagar como se dissesse que não tinha tanta certeza. Esperei com paciência até que Raquel terminasse a refeição e começasse a sobremesa para questioná-la.
- Lembrou de alguma coisa depois que a deixei no hospital? – A postura de Raquel mudou no momento em que ouviu minha pergunta.
Ela deixou a colher de sobremesa na taça, seus ombros se encolheram tensos e ela negou depois de desviar os olhos.
- Escute, Raquel. – Me inclinei para frente, capturando o olhar dela. - Eu interrogo pessoas quase todos os dias, o corpo humano dá uns mil sinais quando contamos uma mentira. Sei exatamente quando estão mentindo para mim então por que não deixa isso de lado e começa a falar a verdade? É o que mínimo que pode fazer depois que eu a coloquei em minha casa, não acha? Não posso morar com alguém de quem não sei nada sobre. Não me importo em te ajudar, mas preciso que seja sincera.
Parece que eu tinha tocado em um ponto sensível, sabia que Raquel se sentia mal por receber remédios, comida e estadia sem pagar com algum valor em dinheiro então usei isso para pedir que contasse a verdade.
- Você estava fugindo de alguma coisa quando entrou na frente do meu carro, ou de alguém. Do que estava fugindo? – A intimidei com o olhar do mesmo jeito que fazia na delegacia.
Raquel não conseguiu sustentar meu olhar, sua respiração mudou de ritmo, ela desviou os olhos e negou com força. Eu tinha conseguido pressioná-la.
- Eu não sei! Eu não sei quem era! Eu fui roubada, levaram a minha bolsa e me bateram com uma arma! – Ela atropelou as próprias palavras.
- Foi assaltada?
- Sim! – Eu assenti, satisfeito por ter tirado parte da verdade dela. Entendi o motivo dela ter demonstrado medo ao se deparar com uma arma no meu porta-luvas.
- E onde você morava antes? Por que não tem para onde ir?
- Eu não posso voltar lá, a casa foi queimada, foi incendiada e agora não tenho onde ficar. Não estou mentindo. – Eu sabia que não. Mas a história permanecia mal contada.
- Um incêndio proposital? Comunicou a polícia sobre o incêndio?
- Sim, foi proposital. Eu não contei nada a ninguém, eu só fugi, fiquei com medo. Quem incendiou minha casa queria me matar.
- Faz sentido. Mas está segura agora, deve ir até a delegacia relatar o incêndio e também o assalto da última noite.
- Não! – Raquel pegou minha mão por cima da mesa, os olhos desesperados me fitaram. - Por favor. Eu vou embora da sua casa, deixo tudo que comprou para mim mas por favor não me leve para a delegacia.
Ao perceber que meu olhar tinha saltado direto para nossas mãos em cima da mesa Raquel puxou sua mão de volta.
- Por que não ir a delegacia? Tem algum problema com a justiça, Raquel? – Estreitei as sobrancelhas, sabendo que teria que parar de insistir em breve já que ela estava a beira de uma crise emocional.
- Nenhum. Eu não fiz nada, eu juro que não fiz nada... – Raquel se levantou, ela tentou ir embora mas eu segurei seu braço com firmeza.
- Sente-se, chega de perguntas. Prometo. – Só a soltei depois de seus olhos confirmarem que ela estava convencida de que eu não faria mais perguntas. - Não desperdice a sobremesa.
Isso bastou para que ela se sentasse ainda receosa e voltasse a mexer em sua taça, seus olhos nunca se afastavam de mim por muito tempo. Raquel parecia permanentemente desconfiada e aquela mania de ficar olhando a porta de entrada e de saída de todo lugar que íamos ascendia ainda mais minha curiosidade a seu respeito.
Mais tarde, depois que voltamos para casa tive a surpresa de não encontrar almofadas ou utensílios destruídos, Holly dormia tranquila quando abri a porta e ao notar nossa presença levantou para nos receber. Ou melhor, para receber Raquel, a traidora passou direto por mim novamente como se eu fosse invisível e foi direto dar boas vindas a ela.
Pelo menos não tinha feito bagunça na sala. Parecia satisfeita em ver alguém além de mim na casa.
Ter um dia de folga normalmente era um tormento para mim, mas agora eu tinha algo a fazer, mostrei a casa para Raquel e a ensinei a mexer nos utensílios. Ela ainda não parecia a vontade e me pedia até para fazer as mínimas coisas como ligar a TV, ela escolheu se sentar no chão e eu observei da varanda enquanto Holly se deitava em suas pernas a fim de receber carinho nas orelhas.
Pensei na frase que Raquel disse enquanto estávamos no carro.
"Ninguém gosta de ficar sozinho" foi o que ela disse e bem, eu gostava. Mas agora que eu não estava sozinho podia perceber aquele vazio um pouco menos latente do que costumava estar até ontem. Constantemente eu imaginava o que Lisa pensava das minhas atitudes e isso tinha a ver diretamente com o esforço que Lisa fazia para ser uma mulher doce e caridosa, nem sempre eu me sentia aprovado pelos conselhos que ela me deixou, mas esse não era o caso agora.
Eu sentia que tinha feito o certo oferecendo o quarto de hóspedes para Raquel, mesmo contra a minha vontade. Sentia que Lisa estaria feliz em ver que eu tinha feito um gesto de gentileza.
Na verdade, eu sabia que tinha feito aquilo movido pela curiosidade e pelo meu instinto investigativo, mas a intenção não mudava o fato e eu me sentia bem mesmo assim.
Mesmo não estando presente Lisa continuava influenciando meus dias de uma forma genuína, de um jeito que só ela era capaz de fazer.
Eu dormi mais naquele dia pelos cantos da casa do que tinha conseguido dormir a noite naquele ano inteiro. Meu pai me ligou por volta das cinco da tarde.
- Pronto. – Atendi.
- Oi filho, tudo bem? Sua mãe disse que falou com você ontem. Como você está?
- Estou bem. – Sacudi a cabeça tentando me livrar dos resquícios do sono.
- Tem certeza? Sua voz está lenta.
- Eu estava dormindo. - Expliquei.
- Então te acordei, desculpe.
- Não tem problema, eu dormi demais.
- Não foi trabalhar?
- Não. – Esfreguei os olhos, me dando conta de que não tinha comentado com eles sobre o acidente. - Eu me envolvi em um acidente com o carro ontem de madrugada, me deram o dia de folga.
- Acidente? Disse que estava bem, Daniel.
- Eu estou. – A forma como eles tentavam me fiscalizar ainda me incomodava, esse era um dos motivos pelos quais eu tinha decidido me afastar depois que tudo aconteceu. - Ninguém se feriu, foi só um susto.
- Por estava dirigindo de madrugada?
Pensei rápido.
- Eu ia até a festa que Alice tinha me convidado, a mãe disse que duraria até tarde e eu decidi aparecer. – Ouvi o suspiro pesado dele do outro lado da linha.
- Tem certeza que está bem? Não se machucou ou danificou o carro? Posso passar aí com sua mãe mais tarde se precisar de alguma coisa.
- Não precisa. – Me apressei em negar, não imaginava como reagiriam ao se depararem com uma mulher andando pela minha casa. - Não estou machucado, está tudo certo com o carro e amanhã já vou trabalhar normalmente. Passo aí assim que sair.
- Tudo bem. – O silêncio perdurou durante alguns segundos. - Filho, só queremos cuidar de você. Sabe disso, não sabe?
Eu assenti mesmo sabendo que ele não podia me ver.
- Sei, pai. Tudo bem.
- Se alimente bem e durma direito. Nós nos vemos amanhã.
- Até. – Me despedi encerrando a chamada.
Mais tarde, perto das nove da noite um cheiro irresistível de frango assado invadiu a varanda. Meu estômago protestou e eu praguejei baixo, achava que tinha comido o bastante para o resto do dia hoje no almoço, mas aquele cheiro me fez levantar e seguir para a cozinha.
Na sala a TV estava ligada mas não havia ninguém, a mesa na sala de jantar estava arrumada como eu não via há anos e no centro dela havia um frango bem assado e decorado em cima de algumas folhas que presumi ser alface.
Há alguns metros da mesa, na entrada da sala de jantar estava Holly, com seus meio palmo de língua para fora ela admirava o frango suculento coberto com uma tampa transparente. Mesmo tampado o cheiro tomava conta de toda a casa, havia salada colorida, arroz e um tipo diferente de farofa.
Fiquei animado para o jantar, o que era novo para mim nos últimos tempos.
Holly choramingou no canto onde estava.
- Queremos a mesma coisa, traidora. Não vou te dar nenhum pedaço sequer. – Murmurei para ela que piscou para mim antes de deixar a sala de jantar, como se tivesse entendido e repudiado minha fala.
Enquanto eu lavava as mãos na cozinha Raquel apareceu e desligou a TV. Ela estava com os cabelos longos úmidos e tinha trocado de roupa, percebi que ela gostava de vestidos. A mesa estava posta e Raquel reorganizou os pratos, como se a posição deles fosse fazer alguma diferença, ela ainda não tinha me visto aqui. Achei graça de sua preocupação em posicionar os pratos.
- O gosto vai continuar o mesmo independente de onde eles estejam. – Eu ensaiei um sorriso, tentando brincar. Raquel sobressaltou ao ouvir minha voz soar atrás de si.
Ela se virou para mim, com os grandes olhos levemente surpresos. O cheiro de lavanda de seu shampoo exalava dos seus cabelos assim como o cheiro de loção hidratante corporal era evidente em sua pele mesmo com a distância.
- Eu já ia avisar que o jantar estava pronto. – Ela avisou.
- Não resisti ao cheiro. – Olhei a mesa posta, ela tinha encontrado as louças que estavam há anos guardadas no armário. Puxei uma cadeira sem conseguir esperar por mais tempo.
Raquel ficou me observando em pé no lugar enquanto eu montava meu prato.
- Você vai comer, não vai? – Perguntei.
Raquel não me respondeu, apenas rodeou a mesa e puxou uma cadeira tomando o lugar a minha frente. Ela esperou que eu terminasse de fazer meu prato para fazer o dela.
A carne parecia suculenta e eu comprovei ao colocar o primeiro pedaço de frango na boca. Aquilo estava divino.
- Isso está muito bom. Muito bom mesmo. – Disse a ela depois de engolir. - Ainda bem que você não tem dinheiro para me pagar porque eu jamais iria preferir dinheiro ao invés disso aqui. Abençoadas sejam as suas mãos.
Um vislumbre de sorriso passou pelos seus lábios.
- Obrigada. – Suas bochechas ganharam um tom avermelhado e seus olhos se desviaram. Percebi que gostava da facilidade com que Raquel ruborizava.
Eu comi em silêncio, não quis fazer nada além de comer até que toda a comida do prato estivesse em minha barriga.
- Gosta de vinho? – Perguntei depois de terminar.
- Sim. – Ela afirmou, colocando os cabelos para trás do ombro.
- Eu já volto. – Me meti em um dos cômodos esquecidos por mim há anos, a adega. Ao voltar para a mesa enchi duas taças com um vinho seco argentino que harmonizava bem com o sabor do frango.
Não conversamos muito depois do jantar, tomamos o vinho em silêncio mas eu sentia a forma como Raquel me olhava. Como se eu fosse um enigma a ser desvendado quando na verdade era ela que carregava todo o mistério que a sua situação envolvia. Ela sabia meu nome e minha profissão, e agora conhecia minha casa, enquanto eu não sabia nada além de seu nome e uma parte muito mal contada de sua versão dos fatos que a trouxeram até aqui.
Me ofereci para lavar a louça mas Raquel insistiu que fazia parte do trabalho de cozinhar. Então segui para o meu quarto, depois de tomar um banho e escovar os dentes me preparei para dormir me deitei na cama, respirei fundo não querendo adormecer e reviver meu pior pesadelo.
Fechei os olhos me sentindo exausto, eu só queria um pouco de paz, queria que a dor que eu sentia fosse ao menos um pouco aplacada. Queria parar de ter pesadelos envolvendo o pior dia da minha vida. Enquanto eu suplicava ao meu subconsciente que me deixasse em paz ao menos por uma noite minha consciência foi levada pelo sono.
Só acordei quatro horas depois com meu celular vibrando no colchão. Ignorei a ligação, não estava interessado em saber quem era, quando finalmente consigo dormir um pouco alguém insiste em me incomodar.
Segui para a cozinha. Quem sabe tomar um copo de leite morno me ajudaria a resgatar o sono interrompido por um maldito sem noção que eu não sabia quem era. Vi uma luz fraca vinda do teto da sala, achei que Raquel tivesse esquecido a luz acesa mas fui surpreendido ao vê-la de pé próximo a estante, de costas para mim.
Raquel segurava um porta retratos em sua mão, um que eu conhecia bem mesmo de longe.
- Achei que já conhecia o caminho para o seu quarto. – Raquel se virou para mim em um rompante, seu rosto perdeu perdeu a cor em dois segundos.
Fulminei sua mão com o olhar, a mão que ela segurava o objeto que eu não a autorizei a pegar.
- E-eu, eu só ia...
- Não importa. – Me aproximei, Raquel deu três passos para trás e só parou quando estendi a mão, entendendo que devia me devolver o porta retrato. O tomei de sua mão abruptamente quando ela o estendeu para mim e lancei um olhar duro para ela. - Não mexa nas minhas coisas e não entre em nenhum cômodo sem a minha autorização.
Seus olhos ficaram congelados em mim por alguns segundos, de repente Raquel passou por mim apressada e foi em direção ao seu quarto. Onde deveria estar ao invés de vasculhar objetos pessoais espalhados pela casa.