Como a comida estava intacta deduzi que ela ainda não tinha tomado café, mas eu ainda estava chateado e não iria até o quarto chamá-la. Aproveitei sozinho as coisas que Raquel preparou, me lembrando de deixar o bastante para ela comer depois. Ela não tinha o direito de mexer em algo tão pessoal quanto uma foto, uma foto da minha família. Lembrei o motivo de eu odiar receber gente em casa, sentia como se meu santuário fosse invadido e tocado por mãos impuras e indesejadas.
E eu queria manter tudo intocado, exatamente como era antes de tudo acontecer. Dona Janete sabia que essa era uma das minhas exigências, tudo deveria estar exatamente no mesmo lugar. No quarto em que eu passava boa parte do tempo, o quarto mais importante daquela casa, eu fazia questão de manter tudo exatamente como era, até mesmo de continuar perfumando as roupas com as mesmas fragrâncias.
Aquele cômodo era o meu paraíso, o mar de lembranças onde eu podia me afogar de vez em quando e eu era rígido com a limpeza do local.
Vê-la tocando aquele porta retrato fez uma raiva enorme queimar em minhas veias. Raquel era só uma estranha e em nenhum momento eu dei permissão para que entrasse em minha intimidade.
Talvez eu não devesse deixar o porta retrato ali, a estante era um móvel exposto que qualquer um que chegasse na sala de estar podia ver.
Mas aquela ainda era a minha casa, eu queria manter minhas lembranças onde quisesse e ninguém tinha nada a ver com isso. Ninguém devia se atrever a tocar em nada sem a minha permissão.
Depois de tomar café eu me preparei para sair, depois de deixar meu número em um bilhete me dei conta de que não adiantaria deixar o número se Raquel não tinha um aparelho celular.
O telefone que havia usado para me ligar depois de receber alta tinha sido o do hospital.
Resmunguei comigo mesmo enquanto ia até o meu quarto revirar algumas gavetas, eu tinha alguns aparelhos antigos e um deles devia servir para ela. Deixei um dos celulares ligado em cima do bilhete com o número para o caso de problemas ou de uma emergência e segui rumo a mais um dia de trabalho.
Recebi olhares temerosos de alguns agentes ao passar pela porta da frente da delegacia.
- Bom dia. – Cumprimentei os curiosos, que responderam com desânimo quando passei por eles.
Fechei a cara ao abrir a porta da minha sala e ver Arthur sentado na minha mesa e com os malditos pés em cima da minha mesa.
- O chefe voltou! – Saudou, ficando de pé, Arthur veio até mim batendo em meu ombro. - Espero que tenha descansado porque isso aqui ficou uma zona sem você.
Um sorriso doentio surgiu no rosto dele, não que ele estivesse com algum problema, Arthur parecia um maníaco normalmente então tudo nele parecia doentio. Os cabelos que ele insistia em não cortar chegavam na altura de seus ombros, Arthur teimava em deixar a barba grande e se vestir feito um ogro.
Seu porte bruto não ajudava e a falha na sobrancelha, causada por um acidente na infância contribuía para deixá-lo com o ar ameaçador. Era bom no sentido de meter medo, e ruim porque parecia um homem das cavernas, mas meu amigo estava feliz assim e eu já tinha desistido de convencê-lo a se arrumar descentemente.
Conheci Arthur e Nathan na faculdade de direito, Nathan tinha descoberto que não era aquilo que queria no terceiro semestre do curso, ele trocou para o curso de psicologia e concluiu na mesma unidade que Arthur e eu.
Para minha surpresa nos encontramos na civil anos depois, trabalhávamos juntos, Nathan como perito, Arthur como escrivão e eu como delegado.
- Essa é a minha caneca? – Juntei as sobrancelhas apontando o objetivo que ele usava para tomar café.
- É. – Respondeu. - E aí a garota sobreviveu para contar a história? Ela está bem?
Já tínhamos falado por telefone, precisei avisá-lo que nosso plano teria que ser adiado para outra madrugada.
- Sim. Ela está bem, mas é uma longa história. – Fui até a minha mesa, tomando meu lugar de volta. Arthur se jogou na cadeira da frente na minha mesa. - Tudo que não preciso agora é uma morte nas minhas costas.
Arthur bebericou o café na minha xícara, a xícara que ele não devia estar usando.
- Como ficaram as coisas por aqui? – Perguntei.
- Quer saber como o pessoal trabalhou sem você? A galera ficou bem humorada sem o velho da arma por perto.
Fechei a cara.
- Já mandei pararem com esse apelido ridículo.
- Eles pararam. Na sua frente.
- Não posso fazer nada se não gostam de mim, na verdade acho que ajuda a manter o respeito em dia. Mas esse termo ridículo tem que parar.
- O apelido só vai parar se você deixar de reclamar feito um velho e de ameaçar usar uma arma a cada merda que acontecer nesta delagacia. Mas acho que não é o caso.
Não, não era. Eu não ia parar.
Eu não era nenhum maluco de me descontrolar com os civis, mas não havia paciência sobrando para os agentes, eu tinha fama de chato e ranzinza entre eles. Se eu fizesse metade das coisas que ameaçava já estaria atrás das grades há muito tempo.
- Foi o que pensei. – Arthur deu de ombros. - Tenho novidades que vão melhorar o seu humor.
Juntei as sobrancelhas.
- Que novidades?
- Vai saber se for comigo até a tia Maria dar um prejuízo na hora do almoço. – Arthur bateu na minha mesa feito um maldito ogro. - Estou voltando ao meu posto.
Ele se levantou indo até a porta, lembrar de alguma coisa o fez parar no meio do caminho.
- Vai querer café? – O fuzilei com os olhos, esse infeliz estava usando a minha xícara e ainda estava me oferecendo café. - Não então.
°°°
Esperei a hora do almoço com certa expectativa, quando Arthur deixava alguma coisa para ser dita na hora do almoço significava que tinha a ver com a nossa operação paralela. Nunca falávamos sobre isso na delegacia.
Maria era tia de consideração de Arthur, pelo que tinha entendido a senhora o ajudou quando ele saiu de Minas Gerais e veio para o Rio querendo estudar. Arthur não tinha onde ficar então a cozinheira e dona de uma pensão local cedeu uma de suas quitinetes para ele na época.
Era necessário muita consideração para continuar alimentando um cara como Arthur de graça por anos, nunca nos recusávamos a pagar quando íamos comer lá, mas a senhorinha fazia questão de não receber um centavo se quer pelas refeições.
Eu nunca fui de comer pouco, apesar de manter minha alimentação totalmente desregulada há três anos e muitas vezes não sentir nenhuma fome, a versão saudável de mim que existia até três anos atrás costumava comer bem. Arthur nunca mudou, ele era capaz de comer um boi inteiro sozinho.
Depois de terminar o segundo prato recebi o olhar desconfiado de Arthur.
- Que é? – Perguntei.
- Alguém está com síndrome de biotônico fontoura hoje.
Limpei a boca com um guardanapo.
- Estou nervoso, ficar nervoso me dá fome. – Tentei justificar, a sobrancelha cortada pela cicatriz se ergueu apenas naquele lado.
- Se ficar nervoso te fizesse ter fome você seria um mamute. –Arthur deu um grande. - Desembucha, você primeiro.
- A mulher que atropelei, Raquel. Ela está escondendo alguma coisa.
Arthur deu de ombros.
- E daí? O que você tem a ver com isso? A garota está bem, não é o que importa?
Respirei fundo, olhando ao entorno antes de prosseguir.
- Ela está na minha casa. – Disse de uma vez, fazendo com que Arthur juntasse as sobrancelhas.
- Como assim na sua casa?
- Ela não tinha onde ficar, estava desabrigada.
- E desde quando você faz caridade?
- Não faço. – Bufei irritado. Passando os dedos entre os cabelos. - Só estou tentando ajudar, nem sei ao certo por que fiz isso, mas fiz. Senti que tinha que fazer.
Arthur me encarou como se eu tivesse acabado de informar que estava doente. E talvez eu realmente esteja.
- Cara, você mesmo disse que a garota está escondendo alguma coisa. Já pensou que ela pode ser uma golpista? Ou alguém mandada unicamente para tirar a sua vida? Você sofreu uma tentativa de atentado, Daniel. Não se esqueça disso.
Ouvir ele repetir a última frase foi como cutucar uma velha ferida, uma que doía mais do que o normal e que nunca cicatrizava.
- O que ela fez para te convencer? Sexo?
- Não. – Neguei veementemente. - Não fizemos nada, por que está dizendo esse absurdo? Não sou capaz de fazer nada de bom sem esperar algo em troca?
- Não é o que estou dizendo, é só... – Arthur coçou a barba, fazendo uma careta. - É estranho. Só isso. Fique de olho nela, em qualquer sinal de que ela possa estar buscando informações suas para levar a alguém.
- Ela não é uma espiã ou informante, Arthur. Sei identificar quando alguém está fingindo. Ela é só uma mulher comum que está fugindo de alguma coisa ou de alguém, e eu quero descobrir o que ou quem, afinal ela está em minha casa.
- Tem alguma coisa dela? Documentos?
- Ela os perdeu ao ser assaltada, tenho apenas o nome completo. – Lamentei.
- Então investigue. Não é muito mas é alguma coisa.
- Farei isso. – Garanti. - Agora diga logo, qual é a novidade que você disse que tinha?
Arthur inclinou o corpo para frente enquanto a boca se curvava em um sorriso.
- Pegamos a garota.
- Começaram a ação sem mim? – O encarei, juntando as sobrancelhas.
- Quando você ligou falando do acidente eu já estava na casa da garota, cheguei mais cedo para identificar possíveis saídas que poderiam ser usadas por ela para fugir. Depois que você ligou eu tinha duas opções, ir embora ou aproveitar a chance de invadir o lugar. Estava silencioso e sem seguranças, não ia deixar a chance passar.
Meu peito se encheu de adrenalina, a garota, filha do maldito Ivan Montenegro estava finalmente sob nosso domínio. Eu a usaria para atraí-lo e quem sabe para me vingar de uma vez por todas.
A justiça que esperei por anos sem sucesso de repente pareceu muito próxima de acontecer pelas minhas próprias mãos.
- Você foi visto? – Perguntei.
- Nenhum rastro.
Quase sorri diante da informação. Quase.
- Onde ela está? - Perguntei.
- Em uma área de mata, fora de suspeita.
- Me leve até lá. Eu quero vê-la. – Mal consegui me segurar no lugar. Eu queria largar o expediente e ir agora mesmo até a filha daquele infeliz.
- Depois do expediente iremos. Avise a estranha que não vai voltar tão cedo, espero que confie nela o bastante para deixá-la sozinha em sua casa a noite.
Depois de voltar ao trabalho eu precisei lutar contra mim mesmo e contra o relógio que insistia em segurar os ponteiros. Quando meu horário finalmente chegou ao fim fui com Arthur até a casa dele, trocamos de roupas, com todo cuidado para não sermos identificados e pegamos um carro neutro para ir até o local.
Esperamos escurecer para finalmente sair, já de dentro do carro eu fiz uma ligação para o número que tinha deixado com Raquel. Ela me atendeu no quinto toque, me perguntei que diabos ela estava fazendo para não ouvir o celular tocar. Esperava que ela não se atrevesse a xeretar minhas coisas de novo.
- Oi. – Sua voz delicada soou do outro lado da linha. - Eu... Eu ia te ligar. Queria saber se vai jantar em casa, porque eu ia faz...
- Não vou. Não espere ou faça nada para mim.
O silêncio que se seguiu do outro lado da linha foi tão grande que eu pude ouvir sua respiração forte.
- Tá bom.
Sem dar mais nenhum tipo de resposta eu encerrei a chamada. Queria que ela sentisse que tinha ultrapassado um limite e que nunca mais o fizesse.