A Ruiva do Tráfico
img img A Ruiva do Tráfico img Capítulo 2 Despertando os sentidos
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Capítulo 6 Uma dose de uísque img
Capítulo 7 Escolhas difíceis img
Capítulo 8 De onde vem o poder img
Capítulo 9 Nunca estaremos prontos para dizer adeus img
Capítulo 10 A missão img
Capítulo 11 Novas amizades img
Capítulo 12 Quanto mais você sabe, mais riscos você corre img
Capítulo 13 As vezes é só questão de olhar de fora img
Capítulo 14 Você é sua própria ponte img
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Capítulo 2 Despertando os sentidos

Nada é tão nosso, quanto nossas culpas. A culpa é um sentimento que não nos deixa em paz um só instante. Ela se instala e vai ganhando espaço, até nos paralisar por completo. As pessoas dizem que precisamos nos libertar desse sentimento. Pedir perdão e se perdoar. Mas eu nem tinha mais a quem pedir perdão. Durante muito tempo fiquei me sentindo assim, paralisada diante de tudo que aconteceu. Sentia como se tivesse morrido junto com o Lucas. De certa forma, uma parte de mim também se foi, e por muito tempo vivi em um mundo escuro e triste.

Senti que não havia mais pelo que lutar, e por várias vezes desejei não estar viva. Esqueci o fato de que minha filha ainda poderia estar viva, e estava morrendo de depressão em uma cela do presídio. Foi nesse momento que vi que as pessoas que eu tinha ao lado, eram muito mais do que bandidos e uma facção criminosa. Ninguém soltou minha mão durante esse tempo. Mesmo eu me afastando da missão por vários meses, ninguém me pressionou, ameaçou ou me abandonou. Eles continuaram o trabalho, cuidaram de mim e muitos se solidarizaram com minha dor. Nunca me senti sozinha, eles sempre estiveram ao meu lado, como uma verdadeira família. E foi pela ajuda deles que consegui enxergar que ainda havia pelo que lutar, foram as mãos deles que me tiraram do poço de tristeza onde eu estava morrendo, dia após dia. Mas o que me incomoda ainda é o que sinto, ou melhor, o que eu não sinto. Não consigo sentir arrependimento por nada. Só sinto essa culpa, mas não é uma culpa com arrependimento. Isso pode parecer estranho, mas é muito real e as vezes até me questiono se me transformei em uma pessoa fria e má. Não consigo me arrepender das coisas que fiz. Pois tudo que fiz foi para sobreviver. A culpa que sinto é por ter me aproximado novamente das pessoas que amo, quando ainda havia muito perigo. Se eu nunca tivesse voltado para a vida deles, eles continuariam bem, e agora, o Lucas está morto e minha filha desaparecida por mais de cinco anos. Mas quando começo a pensar em tudo isso, vejo que nunca seria seguro me reaproximar deles, e talvez, nunca seja seguro para ninguém que queira ficar próximo de mim e que não aceite se envolver nesse mundo. Hoje já aceitei que minha vida nunca mais poderá ser a mesma. Já paguei minha divida diante da sociedade. Já não sou mais uma criminosa perante a lei. Porém, continuo no comando do morro, e sei que nunca vou sair disso, não viva, pelo menos. Durante todos esses anos, ganhei fãs, pessoas que me veem como uma heroína, mas também ganhei muitos inimigos. Sei que no morro sempre estarei segura e por isso, talvez nunca possa deixar essa vida para trás. E se um dia encontrar minha filha, vou trazer ela comigo. Pelo menos sei que estará protegida. Sei o quanto o Lucas era contra isso, mas foi por essa teimosia dele em não aceitar a proteção da facção que ele morreu e a Sofia novamente sumiu. Não estou colocando a culpa nele, afinal fui eu quem os meteu nessa, mas de certa forma, isso diminui um pouco a culpa sobre mim, e pensar dessa forma foi o que me fez conseguir voltar a viver.

Um dia no presídio, enquanto estava deprimida, recebi uma carta de um possível fã, e nela dizia que eu deveria parar de me sentir culpada e ver que a culpa não era só minha, ver o quanto eu também era vítima disso tudo. E isso, de certa forma, me ajudou a ver as coisas com mais clareza, e perceber que esse não era o fim, não podia ser o fim. E então eu me reergui e voltei a viver.

Na noite em que sai da prisão, houve uma grande festa na comunidade, depois que tudo acabou, e que finalmente fiquei sozinha com meu pai e o Gaby, meu pai me trouxe um presente. Disse que isso havia chegado na entrada da favela, que foi trazido por um entregador.

- Acho Que é de algum fã, filha.

- Tem cartão?

- Estava direcionado a você, e o motoboy entregou aos meninos que fazem o controle de quem entra e sai. Ele disse que não havia endereço, só dizia para entregar na entrada do morro e que era um presente para você. Os meninos o seguraram lá enquanto abriam a caixa, para ver o que havia nela. Como não havia nada de errado, liberaram o motoboy e me entregaram a caixa. Mandaram te pedir desculpas por isso. Mas eu achei que fizeram super bem, pois no momento em que estamos vivendo, todo cuidado é pouco.

- Verdade, pai. Amanhã quero me lembrar de agradecê-los pessoalmente por isso. Esses meninos tem feito um ótimo trabalho aqui, né?

- Tem sim. Essa é a diferença de trabalhar sendo valorizados e não escravizados e ameaçados. E isso se deve a você.

- Isso é o mínimo que qualquer ser humano merece. O que faziam aqui era crueldade demais.

- Isso é verdade. Mas vamos, abre logo isso aí por que também estou curioso pra ver o que é!

- E você já não viu?

- Eu não. Os meninos abriram para sua segurança. Se eu abrisse também seria por enxerido mesmo, e isso não quero fazer. É sua privacidade.

- Ah meu paizinho, eu te amo tanto. (Falei enquanto colocava a caixa na mesa e o abraçava) que bom que esses caminhos tortos nos colocaram na vida um do outro. Você foi essencial pra mim em todos esses anos.

- E você para mim, filha. Você me deu uma nova razão para viver. E me orgulho muito da mulher forte que você se tornou.

- Me tornei uma criminosa, pai. Isso não deveria ser motivo de orgulho.

- Você é uma sobrevivente da maldade desse mundo. E esse sentimento que temos, só nós dois conseguiremos entender.

Ele estava certo. Nossas razões para estar onde estamos hoje, só nós podemos entender. E ninguém pode nos julgar por isso. Somos sobreviventes.

Finalmente fui abrir a caixa. Era uma caixa prata, com detalhes em vermelho. Uma caixa bem bonita, por sinal. Nela havia um ursinho e uma rosa vermelha, feita artesanalmente, de crochê. Peguei a rosa e nela senti o perfume do Lucas, foi uma sensação tão estranha, era como se ele estivesse aqui. Neste momento comecei a chorar, não consegui nem explicar o que eu estava sentindo. Mas era um sentimento muito real, parecia que ele estava ali em algum lugar, tão próximo que eu podia sentir seu cheiro. Cheguei a pedir para o Gaby e meu pai sentirem o cheiro também, pra ter certeza de que eu não estava ficando maluca. E eles também sentiram o cheiro de perfume. Asssutada, peguei o ursinho que ainda estava na caixa. O cheiro que senti me levou ainda mais longe ao passado. Quando a Sofia era bem bebezinha, antes do acidente. Era o mesmo cheiro da colônia que havíamos comprado juntos, enquanto montavamos o enxoval dela. Neste momento deixei o ursinho cair da minha mão, pela emoção e por pensar em quem poderia ter feito isso comigo. Cai de joelhos no chão em pranto. Meu pai veio me amparar, enquanto o Gaby foi até a caixa e achou um papel.

- Olha Loh! Tem um papel aqui.

Levantei e ele me entregou o papel, nele dizia:

"Sempre prestamos muita atenção no que vemos ou ouvimos, e muitas vezes esquecemos do que sentimos. Dos sentidos que temos, o menos romantizado é o olfato. Mas hoje quero te mostrar o quanto é linda a sensação que os cheiros nos trazem. A capacidade de nos despertar lembranças apenas com um cheiro, nos da uma pista sobre a sua importância.

Hoje é seu primeiro dia livre, espero que aproveite muito e esteja feliz. Esse presente é para te lembrar que mesmo em meio a tudo de ruim que você passou, você continua sendo uma pessoa incrível. Aproveite as sensações boas que esses presentes te trouxerem. Seja feliz e não esqueça nunca quem você é, e o que realmente importa.

De um fã que admira muito sua força.

S.A.D.A"

Quando terminei de ler isso, em voz alta, senti uma sensação muito estranha, como se alguém estivesse me vigiando. Abracei meu pai e disse que estava com medo. Ele ligou para o pessoal da segurança e pediu que colocassem mais homens na guarda de hoje e que ficassem atentos a qualquer coisa fora do comum. Meu pai queria jogar fora as coisas que vieram na caixa, eu não deixei. Quem poderia ter me enviado isso. Senti muito medo, por que seja quem for, é alguém que me conhece o suficiente para saber os perfumes das pessoas mais importantes da minha vida. Talvez, fosse até a pessoa que está com minha filha. Talvez sejam os inimigos querendo me torturar. Mas nada parece fazer sentido agora. Fui dormir, o Gaby dormiu comigo. Durante a madrugada acordei com a sensação do cheiro do perfume do Lucas. Isso mexeu muito comigo. Eu queria tanto que fosse real. Que ele realmente estivesse aqui e eu pudesse abraçar ele. Levantei da cama com cuidado para não acordar o Gaby, peguei a caixa que havia ficado na sala. Abri a varanda com cuidado e sentei no chão com as luzes apagadas. Abri a caixa e só ao abrir senti o cheiro do Lucas e da Sofia. Não peguei nada, só fechei os olhos e fiquei pensando neles, nos nossos momentos juntos. Levei a mão no pescoço e tirei de baixo da camiseta do pijama, o relicário que o Lucas havia levado pra mim na última vez que nos vimos. Coloquei junto dele, na mesma correntinha, nossas alianças, que nunca chegaram a ser colocadas em nosso dedos. Apertei forte e os beijei. Tudo que eu mais queria era poder voltar no tempo e sentir novamente a paz que me trazia o amor dos dois. Lágrimas caiam incessantemente dos meus olhos. E então, me dei conta de que isso talvez possa ser uma pista.

            
            

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