vez com nossa brincadeira. Eu fui culpada por ter a começado, então
terminei com ela.
Saio atrasada do trabalho, já imaginando que perderei o metrô
para chegar cedo em casa. Assim que ponho os pés para fora do
prédio, Ian sai com uma expressão nada legal.
Meu coração quase salta pela boca e o desejo de ir até ele,
vem até mim.
Não é como se tivesse sido semanas ou meses de conversa,
mas o pouco que falamos um com outro foi suficiente para me abalar
por esse "término" idiota.
Faço todo o caminho até a estação, pensando no que ele fará,
se é por minha causa o seu mau humor e se, em algum momento,
nós nos esbarraremos outra vez ou ele insistirá em continuar
mantendo contato.
Depois do que que lhe enviei, não obtive respostas. Não
deveria estar desejando isso, mas mentiria se dissesse que não
estou.
***
Apesar de ter passado o dia todo sentada, meu corpo está
cansado, insistindo para entrar na banheira e ficar lá até o outro dia.
No entanto, Bia, como uma fiel e pontual amiga, bate em minha porta
com o maior sorriso do mundo e com uma empolgação fora do
comum.
Apesar de sermos vizinhas e de ela estar ao meu lado durante
todos os cincos anos em que moro em Nova York, ainda me
impressiono com a ideia de que somos amigas. Ela é linda e
confiante. Mas, também... Pudera! A mulher tem um metro e setenta
de altura, cabelos naturalmente ruivos, corpo esbelto e
autoconfiança. Tudo que falta em mim.
Claro... Eu não sou horrorosa, nem acredito em um conceito
ou tipologia. Minha magreza é um mistério, já que sempre como o
mais variado cardápio de gorduras, e meus cabelos são pretos, lisos,
naturais e bem tratados em casa. Só não gosto de sair para comprar
roupas. Algo que Bia não deixa de lado e sempre me passa na cara.
- Sabe, Emma? Você deveria me dar uma porcentagem do
seu salário. - Senta-se em meu sofá, esperando-me. - É uma das
pessoas mais inteligentes que conheço, se não for a mais, é bonita e
tem dinheiro para dar e vender. Sei quanto ganha um engenheiro na
sua área. Eu pesquisei.
- Quer dinheiro emprestado? Eu já te ofereci. Foi você quem
não...
- É brincadeira, sua ridícula. - Revira os olhos e deixa o
sorriso voltar, iluminando seu rosto cheio de sardas. - Na verdade,
estou meio que em um trabalho.
Paro o que estou fazendo para prestar atenção no que ela irá
dizer. Essa é mais do que uma novidade, é um milagre. Claro que
Bia é esforçada e tenta, de diversas formas, arrumar um dinheiro por
si só, porém devo admitir que não consegue, de jeito algum, deixar
para trás a boa vida de uma filha de magnata.
- Trabalho? - Levanto as sobrancelhas. - Você?
- Posso saber que surpresa é essa? - Questionou ofendida.
- Sempre trabalhei. Fui personal trainer em uma das lojas da
GUCCI e até para aquela mulher que dava dicas de moda.
- Você durou mais ou menos quanto tempo em cada uma
dessas atuações? - Perguntei, tirando sarro dela. - Bia, você
realmente se esforça para ficar no trabalho, mas sempre diz que
ficou chato depois de duas semanas.
- Não pode me culpar pela última vez. A mulher poderia
trabalhar na loja mais chique da cidade, mas as roupas... Meu deus!
Eram horrorosas. - Faz cara feia.
- O que é dessa vez? - Visto-me em frente ao espelho. Pelo
que conheço dela, contará uma longa história que durará todo o
percurso da corrida. - Contadora do seu pai? Porque sempre diz
que quer ser independente, só que não sai do apartamento que ele
te deu e não para de comprar no cartão ilimitado. Bia, você não... -
Ela joga uma das almofadas em mim. Nem esperava que fosse usar
tanta força. - Ok. Vou levar a sério.
- Uma das minhas antigas amigas da loja me levou a uma
agência. E lá, eu... - Viro-me para a olhar com desconfiança. Eu
bem sei quem é essa amiga, e imagino que não deve ser boa coisa.
- O que foi? Por que está me olhando como se fosse me dar uma
bronca?
- Que amiga foi essa? - Perguntei com calma,
aproximando-me dela.
- Sei que Victória não é a pessoa mais confiável, mas...
- "Confiável" não deveria estar na mesma frase que o nome
dessa mulher. - Falei entre os dentes. - Você se esqueceu que
quase foi presa porque ela colocou drogas na sua bolsa? Sem falar
da joia cara que fez todos pensarem que você roubou.
- Eu não me esqueci disso, mas a perdoei. Além do mais, fui
bem recebida e aceita, enquanto ela foi rejeitada. - Contou com
muita alegria. - Meu primeiro cliente é lindo de morrer e tenho que...
- Beatriz Alencar, do que está falando?
Preocupar-me com ela já faz parte do combo. Realmente, eu
a tenho como uma irmã e não quero vê-la metida com coisas
erradas. Seu pai até me liga para perguntar como ela está, já que a
garota insiste em não falar com ele, mesmo que ele o banque.
- É algo sério e seguro, Emma; nada demais. - Nem se
importa com minha cara feia, só sorri e se prepara para contar a
longa história. - Eu não estava confiante para falar a verdade e
tinha as minhas ressalvas, mas depois que a mulher me explicou
tudo, passei a dar credibilidade a esse trabalho. Funciona assim: eu
sempre vou estar disponível para sair com caras ricos para onde eles
quiserem me levar. - A forma calma e empolgada como ela falou
essa frase, assustou-me e me paralisou.
Eu já sabia que minha amiga era maluquinha, só que isso é
loucura, uma maluquice digna de Beatriz.
- Não me olhe com essa cara! Eu não vou ser prostituta,
apenas sair com eles como uma acompanhante.
- Vou ligar para o seu pai e pedir para que ele te interne. -
Estou furiosa. - Ficou louca? Esse é um modo de punir sua família
ou a mim?
- Nem ouse ligar para o meu pai! Se ligar, a nossa amizade
acaba agora. - Reclamou, levantando-se. - Eu estava empolgada
para te contar, mas devia ter adivinhado que alguém tão sem graça
como você, não entenderia a real situação.
- Real situação? - Debochei. - É loucura, Bia. Sair com
homens ricos por dinheiro? Eu já ouvi falar nisso. Está se iludindo se
pensa que vai ficar só na amizade.
- Está me ofendendo. - Afirmou brava.
- Desculpe! Mas, o que quer que eu pense quando fala que
será uma acompanhante? - Nós duas estamos alteradas.
Minha cabeça já ameaçava doer por conta de Ian; e agora,
com essa conversa com Bia, ela nem ameaça mais e parte logo para
o ataque.
- Quer saber? Não vou mais sair com você. Já me colocou
muita preocupação e está agindo como uma mimada sem juízo.
- Quer saber, Emma? Você está sendo tão sem juízo quanto
eu. - Provocou-me, levantando o nariz e vindo em minha direção.
- Mente para si mesma e acha que esconde sua insegurança em
relação aos homens, mas a sua recusa em se revelar para o homem
que gosta e com quem conversa é a prova disso. Sempre foi assim,
até mesmo com a nossa amizade, quando se recusava a aceitar ser
minha amiga.
Quando Bia fica com raiva, fala muitas besteiras, como agora.
Eu deveria estar acostumada com suas piadas e deboche, só que
ela acabou de tocar em uma ferida ainda aberta.
- Não é porque ele é seu chefe. Não é porque não gosta de
fazer compras, que se veste assim; é porque se vê desse modo e
gosta de não ser atraente ou chamativa, pois tem medo de ser usada
e traída, como foi no passado.
- Saia do meu apartamento e só volte quando deixar essa
loucura de lado! Caso contrário, nossa amizade acaba aqui. - Tento
reprimir a insegurança e a decepção que me tomaram depois do que
ela me disse. - Está sendo malvada porque odeia quando estou
contra você. Até tem razão em algumas coisas, mas, como minha
amiga, não deveria dizê-las. Eu não faria isso com você.
O arrependimento no seu rosto é evidente, contudo não mudo
de ideia. Saio da sua frente e vou até o banheiro. Estou muito
cansada para continuar brigando. Eu queria ajudá-la, pois,
claramente, seu novo "trabalho" não é confiável.
Logicamente, não posso julgar nada que não conheço, porém
sei quando algo vai dar errado. Muitas meninas já se envolveram
com essas coisas e nada terminou bem para elas, pois os homens
costumam achar que podem usar e abusar delas, prometendo-as
tudo só para, no fim, saírem vencedores.
Eu não sei se Ian é como essas pessoas, já que mal o
conheço e agora nem dá mais para conhecer. Tive que acabar com
essa loucura antes de sair magoada dela.
Ele estava louco para me ver, no entanto, assim que pusesse
seus olhos azuis sobre mim, ficaria decepcionado. Hoje foi um teste.
Quando se aproximou, ainda assim não pensou que a garota com
quem conversava, pudesse estar em um espaço escuro, olhando
para um computador e vestida como uma estranha.
Odeio me ver em vestidos chamativos e meu corpo não é lá
essas coisas, embora tenha partes interessantes nele; também
nunca sofri abusos, nem nada. No entanto, chamei a atenção de
uma pessoa errada que usou da minha inocência e curiosidade para
me colocar no meio de um furacão.
Minha mãe, como uma mulher religiosa, quando isso
aconteceu, disse que a culpa foi minha, por ser inconveniente,
perguntar demais, não ir à igreja, e muito mais. Usou esse
acontecimento para me punir e me fazer acreditar que o erro foi eu,
não outra pessoa. E, desde esse dia, ela me fez usar roupas que
cobrissem mais o corpo, o cabelo comprido, nunca blusas com
decote, jamais saltos... E muitas outras regras sem sentido.
Essas coisas não têm relação com o que aconteceu e eu não
devia ter feito o que ela queria, no entanto sempre fui submissa. E,
com o tempo acabei me acomodando e me acostumando com a
forma de vida com a qual comecei a lidar.
Eu vir para Nova York era para ter sido a minha liberdade,
mas ela arranjou um emprego aqui e continuou a me exigir modos e
vestimentas específicas. Aí teve um dia em que não suportei tanta
coisa e brigamos. Desde então, não nos falamos mais.
Bia sabe de toda essa história e sempre me apoiou, só que
agora a usou contra mim.
Não posso dizer que entrar na banheira quente me relaxou, já
que minha cabeça não para de pensar em Ian e no que escrevi para
ele. Como, em tão pouco tempo, apeguei-me tanto a alguém? Ainda
por cima, é o meu chefe arrogante.
No fim das contas, Beatriz está certa: sou tão solitária e
medrosa, que afasto as pessoas para não me decepcionar.
Conversar com Ian, apegar-me e depois descobrir que ele se
arrependeu por tudo, seria terrível. Além do mais, o passado ainda
me corrói.
Pensando bem, onde pararíamos com essa amizade louca?
Ian Novack é meu chefe, um homem bonito, importante e muito
arrogante. Não quero mais problemas para a minha vida chata. Não
mais do que os já tenho.
Fiquei tão distraída com meus pensamentos, que só me liguei
que ainda estou na banheira, quando notei meus dedos enrugarem.
Será mais uma noite em que ficarei até meia-noite na frente
do meu monitor, tentando melhorar o meu sistema de monitoramento
e rastreio de dados que estou inventando? Na verdade, preciso de
um servidor adequado para o seu desenvolvimento. Meu computador
não tem a capacidade ideal para criar algo desse tipo, mas o
protótipo já está esboçado, esperando apenas as finalizações
numéricas. Quando estiver pronto, meu sistema poderá ser
implementado por bancos de dados, como os da TEC Corporation.
Dentro dele, será monitorado tudo, desde início, quando os dados
são armazenados, ao fim, quando as informações são modificadas
ou retiradas. Eu o chamo de soldados, pois protege, vigia e vai atrás
das pistas caso algo dê errado, para que não se perca as
informações.
Depois de colocar meu pijama confortável e ficar em frente ao
computador no qual trabalho em casa, passo um bom tempo apenas
encarando o objeto em minha frente. Sei o que devo fazer, só não
estou tomando a iniciativa. Parece que os conflitos do dia
permanecem me impedindo de continuar.
Qual é, Emma? Você já fez isso antes. Um problema não é
tão maior quanto sua inteligência e determinação.
A minha automotivação não ajuda, porém, meu telefone toca
ao meu lado, fazendo meu coração quase sair pela boca.
Ele nunca me ligou. Ian nunca me ligou.
Talvez seja um sonho estranho em que minha noite está se
tornando um filme de suspense e drama esquisito.
Quase desmaio com a respiração frenética e o coração
batendo mais rápido do que um motor de carro. O pior é que meu
corpo simplesmente toma a iniciativa de pegar o celular e atender a
chamada quando ela está quase caindo.
Por alguns segundos, a linha fica muda e eu acho que pode
ter sido um engano dele ou que algo no seu sistema tenha,
simplesmente, ligado para o meu número. Contudo, logo ouço sua
voz grossa e rouca ao meu ouvido, fazendo os pelos do meu corpo
ficarem arrepiados.
- Eu sei que você disse que era melhor pararmos de
conversar, e eu mesmo cheguei à conclusão de que era o certo a se
fazer, mas não consegui parar de pensar em você, apesar de não te
conhecer.
Eu não digo e nem direi um "pio". Ouvi-lo dizer essas coisas
só aumentou a idiotice dentro de mim, pois o sorriso bobo logo
tomou conta do meu rosto.
- Sabe, passarinho? Nenhuma mulher no mundo conseguiu
chegar tão longe. Claro... eu amo a minha mãe e avó. Mas fora
essas duas, nenhuma outra me fez perder o juízo. Confesso que o
mistério aumenta mais o meu interesse e a vontade de falar com
você todos os dias. Quero saber onde está, o que faz ou até contá-la
sobre a reunião chata e a loucura que acabei de fazer. Dispensei a
mulher com quem eu teria uma noite fantástica de sexo. - Eu não
estava preparada para ouvir isso. Nem sei como reagir. - Enquanto
ela falava sobre tudo que aconteceu em Paris, eu só pensava em
você, nas suas ironias.
- Provavelmente, eu reviraria os olhos. - Assim que
percebo que falei, calo a boca com um tapa.
Alguns diriam que sou exagerada. Contudo, nunca tinha
ouvido a sua voz, nem ele a minha. Esse passo me trouxe uma
imensa insegurança, como, por exemplo: e se, em algum momento,
ele me escutar falar no trabalho e me descobrir?
- Eu fiz isso e ela não se importou. - Rio, esquecendo-me
de tudo que acabei de pensar. - Gostei da sua voz. Pelo menos
agora sei que não é um velho tarado que está brincando comigo.
- Claro. Até porque você é uma jovem indefesa. - Ironizei.
A quem estou querendo enganar? Quero conversar com ele,
mesmo com medo. Posso correr o risco. Provavelmente, não voltará
à sala de monitoramento. E, pelo que sei, as vozes no sistema
eletrônico se modificam.
- Achei que estivesse o enlouquecendo.
- Você está. Mas o estrago já foi feito. Pelo menos quero ter
uma amiga sincera na vida. - E, novamente, sendo idiota, sorrio
como se ele tivesse dito algo romântico ou bobo. - Quem sabe,
algum dia, você perca o medo e confie em mim para se mostrar?
- Nunca vai acontecer, Ian. - Levanto-me da cadeira e vou
até o sofá. Como a noite já está perdida, não adiantaria desligar o
telefone e tentar terminar o meu trabalho. - Mas gosto de saber que
é um homem esperançoso.
- Você é má. Sabia? - Faz eu sorrir mais uma vez. - Mas,
tudo bem. Contanto que continuemos conversando, posso suportar o
seu mistério, passarinho.
- Por que me chama assim?
- Seu codinome é Birdpink. Só o melhorei. Fica mais
excitante falar "passarinho". - Usou uma voz sedutora.
Automaticamente, minhas bochechas coram só por imaginá-lo
falar perto do meu ouvido.
- Aposto que está envergonhada agora.
- E, como sabe disso? - Sinto-me constrangida.
- Se é tímida o bastante para não me dizer quem é, deve ser
duas vezes mais quando o assunto muda para algo mais... safado.
- Não sou tão inocente, bundão. - Essa saiu sem pensar.
Normalmente, eu só o chamo assim por mensagem. Falar em voz
alta foi estranho.
- Está vendo? Você tem uma obsessão pela minha bunda.
Deve ser o desejo de tocá-la. É excitante. - Ian não tem limites e,
mesmo a milhares de quilômetros distância de mim, não deixa de me
provocar arrepios ou vergonha por algo que nem é tão safado, mas
que não estou acostumada a ouvir. - Se bem que a moça da
cantina tem um fetiche pela minha bunda. Você é a Catarine?
Não dando para me segurar, rio alto como se tivesse escutado
a melhor piada do mundo. O sonoro som da sua gargalhada também
corrobora para que eu continue rindo. Meus olhos até lacrimejam.
- Não. Eu não sou a Catarine, nem trabalho no refeitório. Se
estivéssemos brincando de quente ou frio, você estaria na geladeira.
- Ainda estou tentando me recuperar.
- Você é uma mulher impossível. Vou acabar achando que é
fruto da minha imaginação. - Ironizou. - Mas, como eu disse, vou
respeitar sua escolha.
- Obrigada, Ian! - Enfatizei o seu nome. - Por que
dispensou a garota? Ela estava tão chata, que preferiu conversar
com uma estranha? - Acho estranho o silêncio do outro lado da
linha e até penso que meu aparelho está com defeito. - Ian? Ainda
está aí?
- Sim. Claro. Desculpe! É que não sei o que responder. Na
verdade, eu só queria que o jantar terminasse, para ligar para você e
conversarmos.
Não posso negar que gostei da sua resposta. Afundo-me no
sofá fofo e sorrio como uma boba por ter sido, minimamente,
especial para alguém. Mas logo me lembro que nunca passará disso
e que Ian, apesar de não ser tão idiota, é meu chefe gato. Nunca nos
conheceremos pessoalmente.
- Tenho que desligar. - Avisei desanimada, mas
disfarçando, para que ele não percebesse meu estado. - Ainda não
terminei o meu projeto particular.
- Você não é uma psicopata, né? - Ele tem o dom de me
fazer rir. - Por que estou começando a achar esquisito esse projeto
pessoal.
- Se eu fosse uma assassina, você estaria morto agora.
- Está certa. - Admitiu. - Então, boa noite, passarinho!
- Boa noite, Ian!
Quando desligo a chamada, ainda estou com o sorriso bobo
nos lábios. Gosto quando ele me chama pelo apelido; é fofo.