Sempre sonhei com conto de fadas. Castelos. Príncipes encantados. Sempre com finais felizes.
Mas nunca imaginei que fosse viver um. Que fosse viver um na forma mais minuciosa, mais detalhada.
Que fosse protagonizar a princesa mais sofrida, que fosse viver de forma tão pontual o conto da Cinderela.
Tem madrasta má, "irmã" malvada, acomodações a desejar.
A única coisa que difere é que tenho um pai vivo, até mesmo conivente com os perrengues que passo.
- Clara, sua imprestável, onde você está?
Até a voz estridente me aborrece. O tom, o timbre, tudo nela me desagrada.
Na Virgínia, mas também em sua filha Bianca.
Concordo plenamente com o ditado que diz: quem sai aos seus não degenera.
Neste caso é a verdade mais pura: tal maligna mãe, tal maligna filha! Faço-me de desentendida, como se a achasse ao menos suportável.
- Estou na biblioteca, Virgínia.
Sei que ela não gosta que eu frequente o lugar, mas deixei de me incomodar. Sei que de qualquer forma ouvirei gritos e críticas, então que seja por um bom motivo.
- Ah, mas é mesmo uma ratinha de biblioteca!
Diz para agredir, maltratar. Felizmente não tem este poder, simplesmente não me afeta.
Deixei de me importar, de me machucar, a partir do momento que perdi meu pai.
Perder minha mãe doeu, saber que jamais a terei comigo causa uma dor imensurável, incomparável, mas conviver com um pai que deixou de se importar, desistiu de amar, dói ainda mais. Porque ele está aqui, mesmo que não seja para mim, mesmo que jamais seja.
- Deveria trancar essa biblioteca! Deveria impedir que você colocasse seus pés aqui. Vê se pode, uma zinha qualquer, sem eira e nem beira, lendo, refletindo, quem sabe filosofando? É por isso que o mundo está essa bagunça, os subalternos não sabem mais o seu lugar!
Esse preconceito, essa mania de sentir-se sempre superior, tudo isso apenas reafirma que o relacionamento dela com papai resume-se exclusivamente a interesse.
Ela é incapaz de amar e ele, também tenho lá as minhas dúvidas se é capaz.
Permaneço em silêncio, não vou cansar a minha beleza.
Ela jamais vai mudar essa forma distorcida de enxergar a vida e eu certamente evitarei castigos e punições se mantiver minha boca calada e minha opinião guardada apenas para mim mesma.
- Mesmo você não merecendo o cuidado, tive uma conversa com seu pai sobre o seu futuro.
Chego a ter comichão com esse comentário.
- Chegamos à conclusão que cursará a mesma faculdade da minha filha. Mesmo a mensalidade estando além de suas posses, arcarei com essa despesa. Realmente minha caridade não tem limites!
Hipócrita! Arg!
Este seu comentário infeliz faz eu sair um pouco de órbita e não atentar para o teor do que ela realmente quis dizer.
- Não entendi.
- Além de pobre e feia, ainda é burra!
Sei que eu não revidar não ajuda em nada a situação, assim também como sei que ao retrucar estarei me condenando a todo tipo de punição e maus tratos, sem ninguém a quem recorrer. Obrigo-me então a me manter impassível, mesmo que minha vontade seja tirar esse sorriso nojento de sua face desagradável.
- Mas como não quero desgastar a minha beleza em uma conversa infrutífera com alguém como você, vou ser curta e grossa: você ficará onde possa ser observada. Ficará onde sei que não encontrará delinquentes da sua laia que possa armar algo, juntamente com você, para tentar roubar o que é meu.
É uma doente. Além de uma pessoa maldosa, é uma pessoa capaz dos piores julgamentos com relação ao próximo.
Chego a sentir-me enjoada, tamanha é a repugnância que esse ser me causa.
Quando lembro das risadas e das conversas que tem com papai, percebo que alguém para ter uma convivência tão boa com esta criatura, somente pode ser alguém parecido com ela.
E isto realmente me abala. Mais do que o preconceito, mais do que este discurso ofensivo, mais do que a incapacidade de fazer a faculdade que meu conhecimento permite, após ter estudado tanto, dedicado-me tanto.
Isto é fichinha em comparação a descoberta que acabei de fazer. Sou sozinha no mundo.
Somente conto comigo e com Deus.
Não tenho família e meu pai é alguém que não me quer em sua vida e acabo de descobrir que talvez não o queira também ao meu redor.
Não quando puder evitar.
Não quando completar meus 21 anos.
Não quando puder me afastar de tudo isto. Quando puder afastar-me de todos eles.
Mesmo que isso talvez me impeça de jamais colocar os olhos novamente em Marcelo Martins.
- Finalmente você aprendeu que comigo não se bate de frente. Que nessa casa mandamos e você obedece, como a escória que é e sempre vai ser.
Sim, ela já deu o recado, mas continua com as ofensas, porque lhe faz bem ser como é. Virgínia se sente bem em ofender-me e felizmente isso não mais me machuca.
- Então era isso que queria determinar. Agora dependerá de você passar na prova, coisa que duvido. Mas se não passar, jamais poderá alegar que não teve a chance de fazer uma faculdade. Coisa que no futuro pode lhe ser útil, pois fala-se muito nas vantagens que os presidiários de nível superior tem em detrimento dos demais detentos.
E rir. Com prazer. Como o ser maléfico e asqueroso que é.
Seu comentário anterior sequer me abala. O fato de não poder escolher a faculdade, de não poder prestar o ENEM, isso sim mexe comigo.
Infelizmente está além de minhas forças fazer diferente.
Não quando não tenho um parente a quem recorrer. Não quando ainda não tenho a chance de me manter.
Claro que poderia tentar um emprego e tentar passar em uma universidade gratuita.
Claro que poderia sim optar por esse caminho, mas no fundo sei o que me prende aqui.
Tenho esperança que algo traga meu pai de volta.
Que ele descubra a real pessoa que sua namorada é. Mesmo que talvez ele já tenha ciência de suas maldades.
Mas que ela direcione a ele suas perversidades, e assim o faça sair deste encantamento glamoroso que tanto buscou.
Apenas essa possibilidade me faz persistir. Resistir. Faz-me aguentar tudo isso.
Talvez minha mente de 18 anos ainda me faça acreditar em milagres. Talvez a adolescente abandonada que fui ainda sonhe com amor filial, ainda acredite em finais felizes.
Não sei realmente precisar o que me faz submeter a tudo isso, só sei que permaneço por aqui.
Mesmo que saiba que talvez, pelo bem ou pelo mal, tenha prazo para encerrar.
Mesmo sabendo que nos meus 21 anos, tendo ou não meu pai comigo, tudo isso terminará.
Que tudo que suporto tem prazo para findar, para acabar.
E tentarei passar por isso, absorvendo o máximo de conhecimento possível.
Tentarei fazer do meu curso o sentido da minha vida.
Tentarei obter as melhores notas, obter talvez estágios que abram possibilidades de um futuro.
Um futuro onde eu seja capaz de me manter quando chegar a hora.
Onde consiga me sustentar, caso não possa contar com meu pai.
E no fundo, bem no fundo, sinto que isso realmente é o que acontecerá.
- Olha se não é a minha querida irmãzinha!
Bianca diz com ironia e solta uma risada debochada.
Letícia Martins a acompanha no riso. Certamente tem os mesmos valores, pois apresenta um comportamento igual ao da amiga.
Mal se passou uma semana e percebi que meu tempo por aqui não será fácil.
- E estas roupas? Não sabia que esta faculdade tinha cotas pra
mendigos!
Elas representam o que há de pior na humanidade. De mais podre.
Um riso de escárnio toma conta do pátio. Parece que os filhinhos de papai não tem outra diversão que não seja menosprezar o próximo.
Assim que me afasto um pouco, sinto um toque discreto me meu braço.
Se não soubesse que Letícia tinha uma irmã gêmea, esperaria mais ataque. Mas esta semana fez-me saber que a amiga víbora de Bianca, tem uma irmã idêntica, mas que nunca vi socializar com a turma que estava me diminuindo.
- Não entendo por que você aguenta tudo calada!
Precisaria de um dia para dizer meus argumentos. Precisaria de paciência para discorrer sobre como tudo isso me colocaria em maus lençóis quando chegasse na gaiola em que moro.
- Não vale a pena!
Frase pequena, mas que resume muita coisa. Que fala tudo que não verbalizei.