- Mas não é saber o seu nome, dito na frequência, que nos tornará amigas. Uma apresentação formal sim. Um conhecimento de que sou diferente da minha irmã, talvez faça você ver com bons olhos minha aproximação.
Não imagino o que podemos ter em comum. Não imagino como possamos ser amigas.
Mas se tem uma coisa que não me tornei foi uma pessoa amarga. Posso ser retraída, posso não ser sociável, mas felizmente a vida e seus dissabores ainda não afetaram a fé que tenho na humanidade.
- Prazer, Clara!
Digo como se não tivesse questionado seu gesto. Como se a conversa anterior jamais tivesse ocorrido. Como se estivesse pronta para ser sua amiga.
Como se sua amizade fosse realmente o que estivesse precisando.
Como se talvez as coisas pudessem ser mais fáceis a partir de então.
De repente as coisas parecem que ficaram mais leves. Mais toleráveis.
E Cibely é a grande responsável por este meu novo modo de perceber a minha realidade, de perceber a minha vida.
- Amo o fato de você ser tão inteligente!
Estamos no intervalo, revisando o conteúdo da prova que teremos na próxima aula.
Minha mais nova amiga relatou pequenas dúvidas e eu, de bom grado, ajudei a esclarecê-las.
- Se não tivesse sido amor à primeira vista, diria que minha inteligência, acima da média, era a real intenção por trás de sua aproximação - gracejo.
Sim, nossa interação me deu confiança para fazer este tipo de comentário, este tipo de brincadeira.
Seu modo extrovertido de levar a vida, está pouco a pouco me tirando do casulo em que estava.
- Mesmo o amor tendo sido imediato, certamente essa sua inteligência ajudou e muito a fortalecer nossos laços.
Ela usa o mesmo tom.
Talvez antes de conhecê-la julgasse que poderia sim haver algum interesse escuso, mas este mês que passamos grudadas, mostrou-me que o que de fato nos une é a pura repugnância ao comportamento da grande maioria dos ricaços que aqui estudam.
Cibely não tolera o preconceito e a superioridade que muitos da sua classe social demonstram com alguém que se veste com roupas que não possuem etiquetas famosas ou que não frequente shoppings e salões de beleza.
Ela os considera vazios e me confidenciou que pessoas assim jamais seriam capazes de agregar nada em sua vida.
- E aí, já decidiu se vai na minha casa depois da aula? Você prometeu que me ajudaria com a prova de amanhã!
Meu pai jamais se importaria com o meu horário. Talvez até ficasse satisfeito em saber que estou na casa dos Martins.
Sim, pois se a família postiça que ele adquiriu para nós tem dinheiro, os donos da Láctea do Brasil têm talvez mil vezes mais.
É a maior empresa de leite e derivados do país e tudo na roupa das gêmeas fala sobre isso.
Assim como tudo em mim grita sobre a nossa diferença social, e eu não poderia estar menos preocupada com isso.
- Não entendo por que não podemos estudar na biblioteca, como sempre estudamos!
Sempre que ela me convida consigo convencê-la a ficarmos na biblioteca da faculdade, mas hoje minha amiga está irredutível.
- Você sabe que lá não consigo concentração suficiente e que estou com dificuldade real nesta disciplina.
Aceno com a cabeça, pois é algo que já havíamos conversado a respeito.
- Sei também que não se sente à vontade para levar-me aos domínios da madrasta má, então resta-nos, como opção, o meu singelo quarto, regado a toda variedade de guloseimas que possa imaginar.
Sim, ela está jogando baixo. Sabe o quanto sou louca por doces. Sabe o quanto os chocolates que sua família produz tem efeito sobre mim.
- Pelo que me lembro de nossas conversas, sua mãe não pensa diferente de Virgínia!
Uso o real motivo que reluto em frequentar a sua casa, pelo menos o motivo mais plausível.
Claro que não quero dizer sobre como seu irmão altera meus batimentos cardíacos.
Como o CEO da Láctea do Brasil causa uma verdadeira revoada de borboletas em meu estômago.
Não poderia dizer como Marcelo Martins altera minhas emoções, mesmo que ela seja minha melhor amiga. Na verdade minha única amiga.
- Pensei que estivesse blindada disto tudo. Blindada deste modo distorcido com que estas pretensas pessoas superiores enxergam a vida. Baixo a cabeça porque mesmo nossa amizade me tornando ainda mais forte e mais capaz de suportar o convívio com este tipo de gente, as
coisas não são tão fáceis como gostaria que fossem.
- Por mais que tente demonstrar que sou forte e que os comentários não me atingem, no fundo eles doem. Não por esperar coisa diferente deste tipo de gente, mas por receber sempre este tipo de abordagem, por sequer receber uma chance, e tudo isso apenas porque não possuo dinheiro ou linhagem de rico. Parece até que nada tenho a oferecer.
Deixo-a entrever na minha armadura tão bem construída para me proteger de tudo isso. Deixo minha amiga perceber que essas coisas machucam, mesmo que eu não me permita deixar transparecer.
- Infelizmente essa é a realidade. Infelizmente em nosso meio tudo isso conta muito, embora existam pessoas que não valorizam este tipo de atributo.
Controlo-me para não perguntar se seu irmão é este tipo de pessoa. Para não perguntar se o comportamento de Marcelo parece como o seu
próprio ou com o da sua insuportável irmã.
- Sendo assim, Clara, não posso evitar que este tipo de situação aconteça. Não posso garantir que não passará por isso. A única coisa que posso prometer é que farei qualquer coisa para protegê-la deste tipo de situação. É que farei tudo que estiver ao meu alcance para que você seja tratada sempre com a dignidade que merece.
E eu sei disso. Nossa convivência tem me mostrado isso. Fico emocionada por seu carinho, por sua amizade.
E então tomo uma decisão.
Pode nem ser a certa. Pode ser algo que me traga ainda mais sofrimento.
Mas enfrentarei, por Cibely, mas principalmente por mim.
Mesmo que me seja desconhecido, mesmo que não me traga um bom presságio.
E infelizmente para mim, neste momento, eu não teria como saber tudo que essa atitude acarretaria na minha vida.
Como todo o sofrimento que passei até aqui se tornaria fichinha em comparação ao que estaria por vir.
Mesmo que não tenha nascido rica, muito longe disso, este tempo em que tenho vivido na casa de Virgínia fez-me reconhecer objetos caros, reconhecer coisas valiosas, que somente muito dinheiro pode comprar.
E percebe-se quão dinheiro alguém pode ter, para ter um ambiente tão luxuoso.
Quão dinheiro para se ter tantos objetos e utensílios em ouro e prata e algo me diz que jamais seria imitação.
Que seriam peças reais, utilizadas para ostentar, para mostrar que não há nada que o dinheiro desta família não possa comprar.
Este mero pensamento causa-me calafrios. Faz-me arrepender de ter concordado com a ideia da minha amiga.
Mesmo já estando estudando há um tempo e não tendo tido nenhum dissabor, somente quando estiver na segurança do meu quarto é que ficarei tranquila.
- Parece que você espera que uma tragédia aconteça a qualquer momento! Relaxa Clara, ninguém desta casa come mocinhas indefesas no jantar.
Sua voz tem um tom de deboche que não me passa despercebido.
- Ah Cibely, se você queria me tranquilizar com este seu comentário, garanto que a ação alcançada foi justamente o contrário!
Falo, deixando claro que não achei graça nenhuma em seu comentário inoportuno.
- Desculpe amiga, acho que todo o esforço para entender este conteúdo está afetando o meu humor.
Ela me dá um sorriso leve, um pedido singelo para que eu aceite suas desculpas.
Aceno afirmativamente com a cabeça, relevando tudo o que foi dito em nossa conversa anterior.
- Acho que uma pausa para o lanche nos faria muito bem!
E antes que eu consiga sequer opinar ela entra em contato com a cozinha, por um aparelho que fica no criado-mudo de sua cama, e solicita todo tipo de petisco para que seja providenciado por quem está conversando com ela.
E diga-se de passagem, muitas coisas que agradam meu paladar, coisas que não são sofisticadas e que satisfazem o meu gosto.
Quando ela termina dou-lhe um abraço carinhoso, que é prontamente retribuído.