Ficamos caladas durante todo o trajeto. Concentrei-me em olhar pela janela e ver todas as transformações ocorridas nesses mais de dez anos que fiquei fora. Apesar de algumas mudanças físicas, percebi que as grandes famílias ainda dominavam o comércio local. Enquanto mergulhava em minhas recordações, nem me dei conta que já estávamos no bairro onde vivi a maior parte de minha vida.
A casa que aluguei ficava no mesmo bairro onde nós duas moramos na infância. Nos conhecemos através da cerca que separava os quintais de nossas casas. No caminho, paramos diante delas, mas hoje era totalmente diferente de outrora. Os novos donos haviam construído no primeiro andar, agora a casa tinha uma garagem e um ar de classe média. Nem de longe era a casa da minha infância, aquela que trazia à tona as melhores e piores recordações de minha vida.
A rua estava diferente, silenciosa. Em outra época, ali era uma extensão da sala de estar. Muitos levavam suas cadeiras e poltronas para os passeios, alguns seguravam uma tábua nas pernas, improvisando uma mesa para o carteado ou o jogo de dominó. As casas ficavam com portas e janelas abertas, as crianças entravam e saíam sem pedir permissão, pois todos eram de confiança. Ninguém se assustava se, durante o jornal ou a novela, alguém passasse correndo e se abaixasse atrás do sofá, com certeza eram crianças brincando de esconde-esconde.
Quase toda a minha família paterna morava ali. À direita de minha antiga casa, ficava a casa de Tia Nana, a mais simpática de todas. Do lado esquerdo, ficava a casa onde Tércia morava. Tia Lula morava de frente para mim. Ao lado dela, ficava a casa do meu avô Antônio, logo depois a de tio Lucas, e assim por diante. Tia Lula havia se casado com um petroleiro, era a abastada da família.
Para mim, a Tia Lula oscilava entre um anjo bom e uma megera, pois sempre ajudava as pessoas, mas depois as humilhava. Por várias vezes, fui vítima de suas maldades. Enquanto olhava para o que um dia foi o meu lar, várias recordações vieram à mente, abrindo feridas que nunca sararam.
- Poxa, Thaís, você riscou a parede do meu quarto, agora mainha vai brigar comigo! - resmunguei enquanto tentava limpar a sujeira que a minha prima fez.
- Aff, Clara, deixa de ser ruim! Mainha deixou você morar aqui, agora não posso nem desenhar na parede que você reclama. - Thaís sempre jogava na minha cara que eu morava ali de favor. - Esta casa é minha, sabia? Minha mãe disse que, quando eu crescer e me casar, venho morar aqui.
Eu revirava os olhos e voltava a limpar a parede. Saímos da roça para morarmos na cidade só para eu poder estudar. O terreno, que o meu pai comprou com muito sacrifício, havia sido invadido pelo filho de um famoso grileiro de terras da região. O alicerce da casa já estava pronto, metade das paredes já tinha sido levantada, mas todo o investimento foi perdido. Meu pai tentou reaver a propriedade, mas foi ameaçado de morte. Sem dinheiro e sem opção, teve que aceitar a ajuda da irmã e acabou construindo na metade do terreno que ela gentilmente lhe cedeu.
Na outra metade do terreno, a Tia Lula construiu uma casa para alugar, foi assim que eu e Tércia nos conhecemos. A nova vizinha foi um anjo bom na minha vida. Nós duas compartilhamos os brinquedos, as dúvidas e as angústias. Tornamo-nos muito mais do que amigas.
Thaís era tão cruel quanto a mãe, que justificava os erros da filha com a desculpa de que a menina tinha ciúme de mim e por isso me pirraçava. Eu sabia que aquela casa não era da minha prima, era minha. Meu pai que a construiu, mas as humilhações pelo favor prestado eram diárias e sempre dirigidas a mim e à minha mãe.
Uma batida no vidro me tirou de meu devaneio.
- Querem alguma coisa? Estão perdidas? - Era o novo morador da casa.
- Não, senhor, me desculpe, é que o carro morreu. - Tércia virou-se para mim e, como se pedisse permissão, girou a chave na ignição, saindo dali em seguida.
Assim que chegamos em casa, tomei um banho revigorante.
- Não vai comer nada? - Tércia perguntou enquanto mexia algo numa panela.
- Não estou com fome. - Me dirigi ao quarto e fui deitar-me. O dia havia sido desgastante demais.
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- Socorro! Tem um bebê nas pedras, socorro! - gritei, apontando para uma criança pequena andando sobre o quebra-mar.
Ninguém fazia menção de se atirar ao mar, todos ficavam boquiabertos, apontando para a onda gigante que se aproximava. Eu não entendia como ninguém se mexia para salvar a pobre criança, então, sem pensar, resolvi mergulhar. Apesar de nadar bem e a distância não ser muito longa, demorei para chegar às pedras. A criança havia sido atingida pela onda, estava de bruços e parecia desmaiada. Quando eu a carreguei no colo, vi o seu rosto todo desfigurado e suas mãos dilaceradas pelo choque com as pedras. A dor foi excruciante.
- Ah, socorro!
Tércia pulou da cama com o susto. Ela estava dormindo ao meu lado quando comecei a gritar. Com certeza era aquele pesadelo de novo.
- Clara, calma, calma! - Tércia me acolheu em seus braços, como sempre fazia naqueles momentos. - Foi só um sonho ruim. Já passou. Shi!
Não sei o que esse sonho significa, mas eu o tive um dia antes da morte do meu pai e o tenho até hoje, mais de uma década após o ocorrido. Eu acho que é um pedido de socorro e só eu posso ajudá-lo, por isso não vou descansar até me vingar de Daniel. Foi pensando em fazê-lo sofrer que eu voltei a dormir horas depois do pesadelo.