A RUÍNA
img img A RUÍNA img Capítulo 3 MINHA ANJA
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Capítulo 6 EU NÃO SOU UM ROBÔ img
Capítulo 7 UMA VADIA img
Capítulo 8 NA FEIRA img
Capítulo 9 CAFAJESTE img
Capítulo 10 ADEUS, VÍTOR img
Capítulo 11 MAINHA ! img
Capítulo 12 NÃO FOI CULPA SUA img
Capítulo 13 VINGANÇA x JUSTIÇA img
Capítulo 14 CONTRATADA img
Capítulo 15 SOCIOPATA img
Capítulo 16 FAMÍLIA PERFEITA img
Capítulo 17 CORAGEM CONTAGIANTE img
Capítulo 18 NOITE DAS MENINAS img
Capítulo 19 O JUSTIÇOSO img
Capítulo 20 UM HOMEM INCRÍVEL img
Capítulo 21 O MARIDO PERFEITO img
Capítulo 22 PODER img
Capítulo 23 GRÁVIDA ! img
Capítulo 24 POÇA DE SANGUE img
Capítulo 25 ACOLHIMENTO img
Capítulo 26 ASSALTO img
Capítulo 27 FOFOQUEIRAS img
Capítulo 28 PAI HERÓI img
Capítulo 29 COMPRA DE VOTOS img
Capítulo 30 BEM TE QUERO img
Capítulo 31 TOME CUIDADO img
Capítulo 32 NO COVIL img
Capítulo 33 CANETA X ESPADA img
Capítulo 34 REVELAÇÕES img
Capítulo 35 CHAMAS DA JUSTIÇA img
Capítulo 36 DOR E VERGONHA img
Capítulo 37 DESCANSE EM PAZ img
Capítulo 38 EPÍLOGO img
Capítulo 39 BÔNUS img
Capítulo 40 NOTA DA AUTORA img
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Capítulo 3 MINHA ANJA

Tércia me convenceu a ir espairecer, afinal, era sexta-feira e eu estava tensa demais. Resolvemos ir até o vilarejo na zona rural onde eu morei na primeira infância. Queria ser eu mesma por algum tempo, porque depois teria que ser a perfeita daquela cidade, a contratada exemplar, a ovelha que abaixa a cabeça e diz "sim, senhor'' sem pensar.

Dirigimos por quase meia hora até a Embira Branca. Queria ir até o barzinho de seu Nô, um amigo antigo de minha família. Eu tinha ótimas recordações do lugar, um ambiente bem familiar à beira do rio do Buril, onde eu costumava pescar com o meu pai. Lembrei-me também dos deliciosos pratos caseiros que eram servidos lá. Dona Isaura, esposa de seu Nô, era cozinheira de mão cheia. Seria bom um pouco de recordação positiva para lembrar-me de quem eu era e que o mundo não era um lugar apenas de pessoas más.

Senti-me um pouco decepcionada logo que cheguei, pois o lugar não era mais isolado como antes. De onde estava, conseguia avistar uma ou outra casa nos terrenos mais elevados. A estrutura externa do estabelecimento também estava diferente, mesmo que preservasse as características rústicas que eu tanto apreciava. O telhado de palha foi substituído por telhas de cerâmica vermelha, as paredes de taipa estavam cobertas por tijolos marrons e havia um novo andar, provavelmente uma casa sobre o bar. A varanda continuava cercada de árvores frutíferas e mesas de jaqueira com bancos de madeira maciça. A lua cheia refletia sua imponência sobre as águas do rio, que brilhavam e faziam lembrar-me das pescas noturnas com o meu pai.

Tércia percebeu uma lágrima formando-se em meu rosto, então, puxou-me pela mão e nós duas entramos pela porta vaivém. Sorri ao constatar que a porta não havia mudado. O bar estava cheio, o cheiro de comida caseira pairava no ar e meu estômago roncou ao sentir-se em casa. Fui até o balcão, pedi água e duas cervejas a um rapaz.

- Se nós duas vamos beber, quem que vai voltar dirigindo para casa? - Tércia perguntou, me encarando.

- Par! - Escondi as mãos nas costas.

- Quanta maturidade, hein, Clarinha! - Tércia apertou os olhos de forma debochada. - Pode beber, eu sei que está precisando bem mais que eu.

- Pô, amiga, vou aceitar, viu? - Não me fiz de rogada. - Amanhã a gente sai e deixo você beber todas.

- Quanta evolução! - Tércia ironizou. - O meu robozinho, que só pensa em sua desforra, já está planejando se divertir amanhã de novo. Fico feliz com isso, de verdade.

As cervejas chegaram e eu tomei um copo inteiro em grandes goladas e já parti para o segundo. Estava calor, e eu não bebia há tempos. Sabia que deveria ter moderação, mas viveria milimetricamente controlada nos próximos quase três meses, queria desopilar ao menos neste fim de semana.

- Vai com calma, Clara! A noite mal começou, e você já entornou duas cervas. - Tércia me conhecia como ninguém e sabia que eu estava entrando em pânico. - Não trouxe o ENGOV, assim teremos um carro fedido amanhã.

- Ah, amiga, deixa-me beber, vai? - Bati no balcão, pedindo a terceira rodada. - Vamos dizer que é nossa despedida, vou levar o maior tempão sem te ver.

Tércia olhou em volta, tentando mudar de assunto, e eu senti que ela estava me escondendo algo.

- Clara? - uma mulher que parecia me conhecer chamou-me e ficou encarando. Ela percebeu que eu não havia a reconhecido. - Não se lembra de mim, não é?

Um cliente se aproximou e ela me deixou para atendê-lo. Tércia me encarou curiosa, e eu apenas dei de ombros, pois sabia tanto quanto ela. A mulher apoiou a cerveja no balcão e se abaixou para pegar o abridor, quando se levantou, tomei um susto.

- Meu Deus, devo estar muito bêbada, juro que vi um cara bem gato me atendendo - falei logo depois de um arroto. - Perdão, mas acho que não te conheço.

Ela era muito bonita, parecia ser um pouco mais velha do que eu e, por mais que tentasse, não conseguia recordar-me dela.

- Sou eu, Angélica, filha de seu Nô, o dono deste bar. E, sim, foi um rapaz que te atendeu - falava enquanto derramava o líquido âmbar em meu copo. - Nossa, se eu não fosse boa fisionomista, acharia que estava falando com a pessoa errada.

Eu fiquei assustada e, ao mesmo tempo, sem graça por não reconhecer a simpática mulher, mas, assim que entornei todo o líquido do copo, uma lembrança chegou até mim.

- Anjinha? É você? - Recordei-me daquela menina magrinha que sempre brincava comigo quando eu ainda era pequenina. - Dá cá um abraço, minha eterna anjinha.

Dei a volta no balcão e abracei a mulher. Nós duas estávamos visivelmente emocionadas. Todas as lembranças voltaram em flashes. Seu Nô era amigo de meu pai e, sempre que podiam, as famílias se encontravam. Geralmente era na casa do seu Nô, pois este tinha um bar e não podia se ausentar por trabalhar de domingo a domingo. Lembrei-me de quando tinha quatro anos e houve um descarrilamento do trem na cidade. Por conta do incêndio que deixou muitos mortos, eu e minha mãe passamos uma semana na casa de seu Nô enquanto o meu pai ficava na cidade ajudando na reconstrução das casas destruídas, afinal, ele era pedreiro de mão cheia.

Apesar da diferença de idade entre nós duas, sempre brincamos juntas. Eu era a bonequinha de Angélica, mas lembro que só a chamava de Anja, tanto que o apelido pegou e todos passaram a chamá-la assim. Repentinamente, Angélica ficou doente e teve que ir para a capital morar com uma tia. Quando retornou, quase dois anos depois, não era mais a mesma menina feliz. Seu Nô vivia repreendendo-a e nem a chamava mais de Anjinha. Segundo o que a dona Isaura contou para a minha mãe, Angélica sorria apenas na minha presença e, mesmo assim, não brincava mais como antes, pois seu Nô a colocava para trabalhar o tempo todo. Assim que iniciou o ano letivo, seu Nô novamente enviou Angélica para a cidade, disse que ela faria curso técnico à noite e tomaria conta do priminho pela manhã. Me recordo que, a partir daí, só via Angélica nas férias. Depois da morte de meu pai, nunca mais havíamos nos visto, até este dia.

- Menina, como você cresceu. - Angélica me olhou de cima a baixo. - Ficou um mulherão lindo da porra!

- Ah, para! Assim eu fico sem graça. Deixa-me te apresentar a minha melhor amiga. Vem cá, Tércia! - Sorri para Angélica. - Tá vendo essa mulher linda aqui? Esta é a minha Anja.

Tércia sabia que eu não era efusiva daquele jeito, era fraca para bebidas e, com certeza, já estava levemente alterada.

- Prazer! - Tércia e Angélica abraçaram-se feito velhas amigas. - A Clara falava muito em você quando éramos crianças, só não morria de ciúme porque achava que você não era real. Nunca te via.

No início de nossa amizade, contei sobre Angélica para Tércia. Eu sofri muito quando ela foi embora. Angélica era uma espécie de irmã mais velha, bem mais velha, já que dez anos nos separava.

- Pois é, tive que ir embora, as coisas se complicaram e acabamos perdendo o contato. - Angélica pareceu triste ao lembrar do passado. - Mas, cá estamos nós, a vida dá voltas, mas parece que nossos destinos estão entrelaçados, né, Clarinha?

Me limitei a levantar o copo e fazer um brinde à nossa amizade. Todas caíram na risada e me seguiram.

- Oxe, vai brindar com água por que, dona Tércia? - Angélica tinha uma voz vibrante e levemente autoritária. - Não aprovou o cardápio de cervejas, não? Tem vinho e caipirinha também.

- Estou dirigindo, hoje é a vez de ela beber. - Apontou para mim.

- Pois pode beber que hoje vocês duas vão dormir aqui - proferiu, entregando um copo a Tércia. - Hoje nós vamos comemorar esse reencontro lindo.

Tércia arqueou os ombros e, ao olhar para mim e me ver dançando no meio do salão, deve ter julgado que talvez esta fosse uma ótima opção. Ela também estava louca para beber um pouco e eu adorava vê-la sorrindo quando bebia. Tércia pegou o copo e sorveu todo o líquido de uma vez, logo depois foi para perto de mim e nós começamos a dançar ao som de Reginaldo Rossi. Tércia não gostava muito do gênero, mas já que estava na chuva, que se molhasse então. Angélica voltou para o balcão e foi atender os outros fregueses, ela não demorou a colocar dois pratos caprichados na mesa e nos chamou para comermos.

- Bora encher o bucho que não quero ninguém passando mal por aqui. - Sentei-me diante do prato e aspirei o aroma da comida como se fosse a maior faminta do planeta. - Cheiro bom, né? Pode comer que é igualzinho ao que mainha fazia.

Não precisou insistir muito para que começássemos a devorar o prato como se não comêssemos há séculos. A comida tinha cheiro de passado, gosto de infância e evocou memórias do meu pai.

            
            

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