Pouco havia dormido na noite anterior, profundamente incomodado com a reação repentina de Victoria. Temia ter feito algo que a tivesse ofendido e, apesar de saber que aquilo era tabu tanto para ele quanto para ela, temia que o tio ou o pai acabassem, de alguma maneira, descobrindo pela boca dela. Afinal, não sabia o que esperar. A lembrança dos gemidos suplicantes em seu ouvido também o incomodavam, deixando-o absorto. Se perguntava, constantemente, até onde teriam ido se ela não o tivesse interrompido de maneira tão abrupta e estranha.
- Bom dia. – Cumprimentou o pai, que ordenhava uma de suas vacas premiadas. Uma das poucas que fazia questão de ordenhar manualmente.
- Bom dia, pai. – Ele sabia que seu pai havia madrugado, pois, segundo ele sempre fazia questão de frisar, seu horário de trabalho começava mais cedo do que o do sol.
- Repôs a ração na granja? – Perguntou Antônio.
- Sim, senhor.
- Moeu o trato? – Ele sabia que sim, pois havia trazido uma saca sobre o carrinho de mão. – Limpou as gaiolas?
- Sim e sim. – Respondeu de maneira respeitosa.
- Alimentou as tilápias? Lembre-se que hoje é dia de checar o filtro. – Ele ordenhava o enorme úbere com o esmero de quem acaricia um bebê.
- Ainda não fui até o tanque. Imaginei que já estaria aqui. – Ele explicava enquanto despejava alguns punhados de trato nas manjedouras.
- Depois que der comida para os cachorros e limpar o canil, por que não dá uma volta com a Canela? – Ele ergueu o olhar do que vinha fazendo. – Leva a Victoria junto com você.
O garoto suspirou, ficando em silêncio enquanto remoía, uma vez mais, os acontecimentos da noite anterior.
- Acho que ela não vai querer ir. – Ele comentou, tentando parecer indiferente. – O pasto deve estar cheio de lama.
O pai o encarou, aparentemente, desconfiado.
- Então, deixa ela ir montada na Canela, ora. – Ele meneou a cabeça, como se aquilo fosse uma solução óbvia. – Entretenha-a. Ela está de férias.
Apesar do desejo de estar junto de Victoria, carregava consigo o sentimento de que havia, por algum motivo, estragado tudo com ela.
- Bom dia, patrão. – A voz estrondosa soou do outro lado da portinhola do curral. – Finalmente um sol bonito para secar o campo.
- Bom dia, Diego. – O pai cumprimentou. – Pois é. Vamos torcer para que continue assim. Meu irmão chegou ontem do Rio. Quero levar ele para pescar no Toledo ainda de manhã. Você cuida das coisas por aqui?
Diego era o peão que o pai havia contratado para auxiliá-lo nos assuntos da fazenda. Um homem de aparência calejada e modos rústicos. O nariz era adunco e a barba parecia estar sempre por fazer.
- Claro patrão. Se quiser, pode deixar que eu termino a ordenha. Pode ir. – Ele lavou as mãos no tanque que havia a um dos cantos.
- O Cesar vem aqui hoje. – O pai se referia ao veterinário que atendia toda a região. – Ficou de passar para dar uma olhada no bezerro que nasceu ontem no pasto.
- Eu acho que não se cria, patrão. Estava muito fraquinho. – O peão respondeu, pessimista. – Só por milagre.
- Então torce pelo milagre, Diego.
Matheus ouviu uma voz estridente ao longe e olhou por através da portinhola para observar Sara se aproximando enquanto se filmava com o celular, vestida em uma sainha de pregas e uma galocha espalhafatosamente rosa.
- Bom dia, povo. – Ela cumprimentou, mais entusiasmada do que qualquer um ali.
- Bom dia. – Os três responderam em uníssono. Jezebel, a vaca leiteira premiada, se moveu, inquieta com o susto que a voz estridente a havia causado.
- Digam oi para os meus fãs, gente. – Os três se entreolharam e depois de volta para a mulher, sem saber como agir.
Diego, diferente dos outros dois, a olhou dos pés à cabeça, da mesma maneira faminta com a qual olhava para qualquer mulher que considerasse minimamente atraente.
O garoto saiu dali, um tanto irritado com a maneira esganiçada com a qual Sara insistia em falar. Seguiu até o tanque dos peixes, aonde atirou um punhado de ração, admirando a maneira como a água parecia ferver enquanto os animais se alimentavam e, depois, foi até o canil.
- Penumbra, Giza, Dalila, aqui. – Ele chamou, observando surgir de dentro da pequena construção que servia aos cães como casa, um sisudo pastor belga e uma pomposa border collie, seguidos de uma animada e brincalhona vira-latas.
Ele se agachou sobre o chão coberto de brita e afagou cada um dos cachorros, guiando-os até o local aonde guardava a ração e enchendo seus respectivos pratos. Lavou, então, a tina de água e a encheu com água fresca.
Depois de limpar o canil e soltar o cães, seguiu, finalmente, até o pequeno estábulo, aonde Canela, uma eguinha colorada esperava, impaciente, em sua baia.
- Bom dia, menina. – Ele afagou o focinho do animal, que pareceu receptivo à sua carícia. – Como você dormiu?... Hmmm, que bom.
Ele entrou na baia, levando consigo um balde com ração e trato.
- Eu? – Ele perguntou, simulando um diálogo com o animal, que tinha as orelhas atentas à conversa, como se estivesse entendendo cada palavra. – Não dormi muito... Por que? Bom, minha prima veio passar férias aqui e eu acho que já estou ficando louco.
Ele pegou a escova e se pôs a escovar o pelo avermelhado enquanto a égua comia.
- Se ela é bonita? – Ele se silenciou enquanto tirava alguns nós da crina da égua. – Ela é linda... Só que acho que é maluca. Ou eu devo ter feito algo ruim.
Diariamente, seu monólogo com o animal se estendia pelos minutos que passava escovando seu pelo e sua crina. Mesmo quando não estava de férias, fazia questão de gastar alguns momentos de sua manhã ali, aonde simulava uma breve conversa sobre amenidades.
- Está conversando com o cavalo? – Matheus se virou rapidamente para Victoria, que tinha o rosto apoiado nos braços que estavam cruzados sobre a mureta da baia.
Canela olhou de Victoria para Matheus, como se lhe dissesse "tem razão, até que ela é bonita".
- É claro que não. – A égua resfolegou, protestando contra aquela mentira. - E não sabe que é falta de educação ouvir a conversa dos outros?
Victoria sorriu, fazendo com que Matheus torcesse o rosto, confuso.
- Então estava conversando com o cavalo. – Concluiu, debochada, ostentando um semblante vitorioso.
Matheus voltou sua atenção para aquilo que estava fazendo, suspirando, resignado.
- É uma égua. – Ele acariciou o largo pescoço, orgulhoso. – Seu nome é Canela.
- Oi, Canela. – Cumprimentou, fazendo uma pausa. – Posso entrar?
- Agora que já entrou. – Ele respondeu, dando de ombros.
- Eu estava perguntando para a Canela. – Ela deu um risinho divertido.
O cheiro do creme em seu cabelo invadiu as narinas de Matheus quando a prima se aproximou para acariciar o animal. Um breve silêncio pairou no ar, enquanto Matheus tomava coragem para puxar assunto.
- Escuta. – Ele começou. – Seja lá o que eu tenha feito ontem, me desc...
- Matheus. – Ela o interrompeu, evitando seu olhar. – Podemos apejas esquecer que aquilo aconteceu? Por favor.
Ele a observou, incrédulo, por um momento, mas, por fim, respondeu.
- Ah... é claro.
Não, ele não seria capaz de esquecer.