Ele reclamou e abriu a porta com tanta facilidade que me senti envergonhada, era um espaço pequeno, minúsculo na verdade, mesmo assim eu queria entrar e esperar por ele. Para que olhasse para mim de novo com aqueles olhos azuis perfeitos. Por mais que ele fosse apenas um homem, era meu salvador.
Era como me sentia naquele momento, salva, não a heroína da própria história.
Me sentei o máximo afastada da porta possível e reparei em como a textura do banco era diferente, parecia couro e não tecido, estava frio. Não demorou até que ele saísse do prédio e ao contrário do que eu pensei, ele não se sentou do meu lado, fiz um bico de choro que não foi notado por ninguém.
O carro ligou, silencioso e deslizou pelo asfalto. Na última vez que pisei do lado de fora foi quando cheguei no galpão e a rua ainda era de paralelepípedo, agora asfaltada. Pela avenida, prédios altos e vitrines se erguiam. Cada um deles iluminado, luzes refletiam no vidro criando linhas coloridas que precisei tocar.
- Vai deixar as janelas marcadas, garotinha.
Abaixei a mão rapidamente e olhei para ele. Estava sorrindo. Passei a observar e ouvir dentro e fora do carro.
Dentro, descobri que meu salvador era Luke, parecia o chefe de tudo, embora Spooky falasse com ele como um bom amigo, diferente de como eu ouvia os subordinados falarem com meu pai, o garoto do meu lado não parecia mais velho que eu e era chamado pelos outros de Novato, estava ansioso e manteve a arma apontada para mim o tempo todo.
Lá fora, percebi que passamos por muitas ruas mais de uma vez e demos muitas voltas antes de Spooky ter certeza que não estava sendo seguido e entrar no estacionamento subterrâneo do prédio.
Fiquei quieta enquanto os outros saíam do carro, Luke deu a volta e abriu a porta do meu lado, me virei para ele e esperei nova ordem.
- Chegamos - ele sorriu - como você se chama?
- Charlie.
- Bem, Charlie, tem alguém lá dentro que pode não gostar de ver você - ele se inclinou sobre a porta do carro e seu cabelo longo loiro caiu sobre seu rosto - digamos que trazer você aqui nesse momento é algo imprudente. Entende isso?
- Sim.
- Ótimo, mas vamos conseguir um quarto para você e te alimentar - ele suspirou pesadamente - porra, eu tô morrendo de fome.
Eu queria dizer mais do que palavras soltas, mas tudo aconteceu tão de repente, ele me tirou do carro e o acompanhei até o elevador onde os outros dois esperavam.
- Senhor, eu só queria dizer que é uma honra estar na torre - o novato disse.
Mas os olhos de Luke estavam no espelho à nossa frente, onde ele fitava o reflexo da minha barriga exposta, ele tocou de novo, mais leve dessa vez e de novo eu estremeci com a dor de seus dedos ásperas sobre as feridas.
- Peça para ela fazer uma lista - Spooky disse a ele - peço a alguém para buscar amanhã.
O elevador demorou para chegar ao último andar, o painel eletrônico já havia me entediado profundamente. Saímos para um longo curto onde só havia uma porta, que ia do chão ao teto e era extremamente larga, poderíamos passar os quatro de uma só vez.
O interior era ainda mais impressionante, um amplo espaço aberto com mais de um ambiente, cozinha, sala de jantar, sala de estar, bar. Tudo à vista sem paredes, portas ou trancas na frente. As grandes janelas de vidro que ocupavam toda a extensão do apartamento futurístico faziam parecer ainda maior.
- Bem vinda ao lar, boneca - Spooky falou ao passar por mim, seu tom era entediado.
A porta foi trancada atrás de mim, o garoto abaixou a arma pela primeira vez, seus olhos estavam tão encantados e brilhantes quanto o meu.
- Donald? - Luke gritou da sala - temos visitas.
Meu corpo todo ficou tenso quando um homem de meia idade apareceu na escada, ele era grande e através das mangas dobradas da camisa eu pude ver os braços cobertos de tatuagens escuras, a barba grisalha ia até o peito e o cabelo bem cortado dava um ar de cuidado com a aparência inegável.
Ele olhou para mim com os olhos injetados.
- Mas que merda, Luke.
- Ah não fala assim. ela é minha agora.
- Saiu para buscar informações e volta com dois bichinhos de estimação?
Luke olhou para mim e murmurou um pedido de desculpas que eu não entendi. Ele não tinha nada a que se desculpar.
- Spooky vai te levar até o quarto de hóspedes, fique a vontade para um banho ou descansar e pode descer para jantar comigo depois.
- Vem garota - Spooky fez sinal para que eu o seguisse antes de se virar para o novato - e você fica aqui e em silêncio.
- Sem problemas, senhor.
- Tchau - fiz um aceno rápido para o novato antes de seguir escada acima.
Spooky andou pelo longo corredor cheio de portas e obras de arte nas paredes, sei que são obras de arte porque eram horrorosas como as do museu que eu ia com a escola.
- Acho que esse é o mais feminino - Spooky abriu uma portas girando a maçaneta e deu espaço para que eu entrasse.
Olhei a porta com atenção.
- O que está procurando?
- Não tem trincos ou cadeados?
- Não, mas não se engane, ninguém entra ou saí daqui sem permissão.
- Está bem, obrigada.
Assim que parei na porta meu coração também parou, não tinha palavras para descrever aquilo, eu poderia correr uma maratona ali dentro, a cama caberia umas dez pessoas e tinha mais duas portas dentro do quarto.
- É tudo um quarto só?
- Menina - ele riu - é uma pena que você vai ser descartada logo.
***
Pov Charlie
Fui empurrada para dentro daquele quarto de uma vez, não com as mãos, Spooky fazia o possível para não olhar para mim, quanto menos me tocar. O empurrão foi em minha mente, acho que ficar tanto tempo presa em um quarto minúsculo fez isso com a minha mente, vi um quarto, uma porta e entrei, não consegui resistir.
- O que eu faço? – me virei para Spooky atrás de instruções.
- Não pulando da janela, pra mim está ótimo.
Sem ao menos terminar a frase, ele saiu de frente da porta, corri e dei uma breve espiada, vendo que ele já estava no final do corredor, descendo as escadas. Ele nem tinha fechado a porta então fiz isso.
Quando voltei minha atenção para o quarto parecia ainda maior, á minha frente a cama ficava no centro, entre duas janelas do teto ao chão e cada uma com a largura do meu antigo quarto, andei com os pés descalços pelo carpete macio e quente, toquei o veludo da poltrona e a madeira fria da mesa, acima dela uma pequena prateleira com alguns livros, abri um deles, não haviam paginas faltando ou frases censuradas.
Continuei explorando, uma das portas que abri tinha um armário, um closet, estava recheado com roupões felpudos e cobertores, um espelho no final e em frente a ele um puff de veludo rosa claro.
- Eu poderia morar aqui – disse para mim mesma.
Do outro lado do quarto havia outra porta, que descobri ser o banheiro com uma grande banheira, eu não poderia imaginar um lugar assim nem mesmo nos mais absurdos sonhos, era tudo muito branco, exceto pela pia de mármore escuro, parei em frente a ela, abri a torneira e senti a temperatura da água.
Estava fria, muito diferente do que estava acostumada, comecei a chorar quando percebi o quão precioso era lavar o rosto em água fresca pela primeira vez em anos, não importava o quanto Spooky tenha tentado me assustar dizendo que não sairia dali sem a permissão de Luke, eu estava livre ou pelo menos tinha alguma dignidade, o que me lembrava das minhas feridas.
Levantei a blusa, só o ar já foi o suficiente para fazer as feridas doerem, haviam bolhas em toda a parte onde o cinto de ferro apertava, algumas com pus branco e nojento.
Ouvi uma batida na porta e demorei um tempo até perceber que era eu quem tinha que abrir.
- Comida? – novato deu um breve sorriso, ainda parecia um pouco nervoso, mas tentava ser simpático.
- Luke disse pra eu descer e jantar com ele.
- Eu sei, é que ele acabou ficando ocupado, pediu para eu subir e trazer isso – novato trazia uma bandeja de prata com uma grande redoma de mesma cor - como massa?
- Acho que sim.
Ele passou por mim e colocou a bandeja sobre a mesa perto da poltrona.
- Uau, esse quarto é demais.
- Parece empolgado em estar aqui.
- É, acho que sim – ele encostou na parede de braços cruzados – você não faz ideia de onde está, não é?
Balancei a cabeça.
- Bem, esse é o palácio do rei da cidade. Estar aqui, principalmente na cobertura significa que ele confia em você. Bem, no seu caso, acho que o motivo é outro.
- Ele me salvou.
- É, o que aconteceu com você foi uma merda, desumano no mínimo e pensar que ele era seu pai. Nossa.
- Nunca o vi assim, nos livros infantis os pais eram amorosos e atenciosos, cuidavam dos filhos com amor. Ele não me amava.
Novato me olhou por um tempo, o cheiro da comida estava impregnando tudo então tirei a redoma, era um prato com macarrão e um molho branco, havia brócolis também e alguma coisa marrom adocicada.
- Está com dor?
- Um pouco, mas acho que vou melhorar agora.
- Não quero que me entenda mal, mas eu entendo seu pai – levantei os olhos me mantendo inexpressiva – tipo, o mundo é cruel, garotas saem para uma festa do colégio e são drogadas, estupradas e mortas – cada palavra saía de sua boca com mais raiva – ele queria te proteger, só foi longe demais.
- Aconteceu com alguém que você amava?
- Minha irmã.
- Sinto muito.
- Se eu tivesse proibido ela de sair naquele dia, não teria acontecido. Seu ai fez basicamente isso.
- Por oito anos.
- Ele deve ter esquecido.
Não consegui evitar um sorriso, ele estava fazendo piada com uma situação dolorosa mas que havia ficado para trás.
- Desculpe ter apontado a arma para você.
- Tudo bem, não me incomodou.
- Era minha primeira missão assim.
- Parece mais relaxado agora.
- Você também. E, olha, meu nome é Adam. Nada de novato pra você, chegamos nessas juntos.
- Tá bem, me chama de Charlie.
Ele assentiu, me concentrei na comida, dei uma garfada e o sabor foi a coisa mais maravilhosa do mundo, tinha realmente gosto de comida e não de micro-ondas, não consegui parar até o prato estar completamente limpo.
- Nossa, você tava mesmo com fome. Quer que eu pegue mais.
- Não, obrigada.
Ele veio e tirou a bandeja da minha frente, deu as costas e depois voltou a me olhar quando já estava na porta.
- Olha, eu espero que dê tudo certo para você, depois do que passou.
- Obrigada.
Ele saiu e fechou a porta, agradeci por isso também. Adam parecia legal e achei muito gentil a forma como falou comigo. Me sentia cansada, estava tarde e toda aquela agitação foi exaustiva, nunca tinha me movimentado tanto, demoraria até que eu acostumasse com escadas, por exemplo, me deitei na cama, macia como algodão, completamente desconfortável.
Virei para um lado e para o outro, estava solta, parecia mergulhada em um mar de espaço infinito, tentei me encolher e usar os travesseiros, continuei com a sensação de estar em queda livre.
Era insuportável, me enrolei no cobertor mais quente e entrei no closet, ali dentro pude respirar melhor, era mais claro e mais limpo que meu antigo quarto, mas tão estreito quanto, o que já me causava alívio.
Deitei sobre o chão, um pouco mais duro do que eu estava acostumada, mas muito melhor que a cama, apague a luz e quase me senti em casa, ainda assim, faltava algo, faltava a caixa, faltava a dor e a angustia.
Como eu poderia sentir falta dessas coisas?
E mais uma vez, comecei a chorar, inconsolável.