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Fazia um tempo que não ouvia uma melodia harmoniosa. Naquele dia, ao passar por um corredor no prédio da Universidade, eu ouvi um som agradável. De início, eu não reconhecera muito bem o instrumento, mas conforme me aproximava, descobri ser um violino. O som era calmo, mas às vezes me fazia esboçar uma expressão de repreensão. O violinista provavelmente estava aprendendo. Me peguei cantarolando a música ainda enquanto a ouvia, de forma tão natural que sequer me dera conta do que estava fazendo. Eu estava simplesmente parada, poucos metros da porta de onde vinha o som.
Algo estava me chamando, eu sentia cada nota como nunca. Por alguns segundos, me senti no ramo da música, e não mais dentro de minha carreira promissora de possível psicóloga.
"Heather?", ouvi alguém chamar meu nome. "Heather?", repetiu outra vez, de forma mais firme. Finalmente saí do transe em que me encontrava e percebi a presença de Sophie, uma colega de sala.
"Me desculpe", falei, quase que de imediato, recobrando a consciência. "Eu estava ouvindo a música".
"Você estava cantando a música, Heather", ela alertou-me. "Você a conhece?", indagou ela. Percebi que de fato eu não sabia identificar aquele som, e tinha certeza de que nunca o ouvira antes. Como eu sabia a letra dele? "Bem, vamos nos apressar antes que o horário termine", disse Sophie, depois que ignorei sem querer sua pergunta. Ela começou a andar pelo restante do corredor que ainda havia. Cogitei me aproximar da sala e ver quem era o músico que tocava aquelas lindas notas, mas não poderia me dar ao luxo de não consumir nada antes do próximo período.
Ao lado da Universidade havia poucos lugares para comprar comida rápida, e o próprio refeitório era lotado demais para poder utilizar sempre. Era muito comum encontrar sempre os mesmos rostos por aí, na rotina de cada um. Naquele dia, meus colegas decidiram precisarmos comer algo diferente. A maioria de nós possuía carro, mas nos separamos em dois veículos para poupar gasolina. Nosso destino era o Gorditos, um restaurante mexicano que ficava cerca de vinte minutos da Universidade.
"Um burrito de frango, por favor", pedi para a atendente que prontamente atendeu meu pedido.
Não tínhamos tempo para ficarmos parados no local, então voltamos comendo os burritos e tacos ainda no carro. Não éramos amigos, na verdade, a maioria dos estudantes não fazia amigos, tudo que queriam ser colegas úteis para estudos ou pequenas atividades levianas, como festas universitárias. Nós, do alojamento, sempre participávamos de todos os convites, unicamente porque éramos vistos como tristes por não termos acomodações melhores. Na cabeça daquela galera, pobres como nós, deviam ficar satisfeitos com as festas; não comparecer era como aceitar aquela realidade e se achar o diferente. Ninguém tinha muito saco para aquilo, então para evitar qualquer confusão, íamos.
De volta ao campus, fomos para nossa próxima aula. Psicanálise não era tão interessante para mim como achava que seria, na verdade, eu andava questionando muito todas as disciplinas. Reclamar do curso para meus pais era impensável; eles pagavam uma boa parte da mensalidade. Psicologia tinha muitas oportunidades, eu não podia simplesmente dar para trás, e eu não sabia se queria de fato fazer isso. Eu tinha que terminar, só isso. Faltavam sete semestres.
O corredor me era familiar. Lá estava a porta que antes vinha o som. Nada havia ali. Passei por ela e olhei de relance pelo pequeno espaço que havia ali, a fim de identificar o autor da música, mas não havia ninguém, a sala estava vazia. Senti um singelo aperto no perto, como se algo estivesse faltando ou me machucando, mas eu não sabia o motivo, não sabia que sentia falta de alguma coisa que eu não me lembrava do que era.
Sentei-me pensativa. Minha mente ainda vagava na melodia. Eu não conseguia esquecer, simplesmente não conseguia. As palavras da professora não chegavam até mim, eu não a ouvia, era como se algo estivesse abafando aquele som todo, como se eu não precisasse escutá-la, como se eu não devesse estar ali, era coma se eu não estivesse lá nunca.
Quando a aula terminou, me senti na obrigação de encarar aquela porta mais uma vez. Dessa vez, antes mesmo de chegar perto da porta, eu já estava ouvindo o som da música, mas não era a mesma, era uma melodia completa e repleta de instrumentos, não só um violino. Olhei pela pequena janela da porta. Haviam várias pessoas sentadas em conjunto, cada uma com seu determinado instrumento, provavelmente uma orquestra. Rapidamente procurei pelos violinos, considerando que normalmente sempre ficavam mais adiante, ao menos era o que eu achava. Havia muitos violinos e pelo menos metade dos violinistas eram homens. Eu não tinha certeza se era um homem que eu procurava, mas minha mente havia me convencido de que sim. Não consegui olhar com muito cuidado, eram muitas pessoas e a janela era pequena demais. Eu não podia abrir a porta, não mesmo. Continuei passando meus olhos por todos os homens, até que ao fundo, puxando uma cadeira e se sentando, notei um garoto. Não pude vê-lo com tanta nitidez, mas havia alguma coisa errada. A orquestra já tinha começado quando ele se sentou e começou a seguir o ritmo, desafinado e quase que fora do tom. Nesse momento, alguém esbarrou em mim, me obrigando a parar de olhar pela janela da porta. Recobrei a consciência e tornei a olhar a janela, mas não consegui localizá-lo mais. Não podia mais ficar parada ali, então resolvi seguir meu caminho. Não enrolei muito, precisava localizar meus companheiros para irmos embora até o alojamento; eram cerca de quinze minutos até os dormitórios.
Em minha cama, completamente envolta em um fofinho edredom, a melodia ainda soava em minha cabeça. Tão clara e serena. Por alguns segundos, sentia meus lábios se moverem sozinhos, formando cada nota e letra do som do violino; nem mesmo a lembrança das notas desafinadas me fazia enrijecer. Havia algo particularmente curioso sobre tudo aquilo.
Naquela noite, enquanto minha mente me permitiu revisar diversas vezes em minha cama de lençol duvidoso, percebi que precisava saber quem era o garoto do violino. A Universidade tinha uma página com a foto de todos os estudantes de todos os cursos e períodos. A minha foto era feia, não pela minha aparência, mas por alguma razão meu olhar sempre carregava uma dose de preocupação, ou qualquer outro tipo de expressão que não devia ser exposta numa fotografia. Uma pessoa branca e loira como eu já era apagada pela iluminação com frequência, mas aquele pesar de meus olhos negros causava uma quebra quase que imediata. Não tinha como fugir daquilo, era a minha essência natural.
Passei os dedos pela página das fotos, até finalmente localizar a parte de música. Eram oito semestres, literalmente oito turmas diferentes para procurar o garoto do violino desafinado. Ele parecia ter a mesma idade que eu, então presumi que talvez estivesse no terceiro período também. Passei pelos rostos e nomes de cada garoto, mas não o achei, na verdade, tudo que encontrei olhando aquelas primeiras fotos foram rostos sérios e bonitos, quase que formais, do tipo, ricos. Rostos que davam inveja. Por alguns segundos pensei que se o garoto visse minha foto debocharia de mim, eu não estava à altura daquela turma. O garoto não era do terceiro semestre, talvez estivesse adiantado? Quarto ou quinto semestre, talvez? Avancei a página, procurando os próximos veteranos. Não encontrei o garoto, apenas mais humilhação. Antes de avançar para o quinto período, percebi que talvez ele fosse do segundo período, então retornei duas páginas para verificar. Havia um sinal positivo logo no início da página, eu havia visto àqueles rostos pela porta, o garoto deveria ser daquela turma. Ele não estava na página. Retornei até a primeira turma, ele não estava, então avancei nos semestres faltantes e ele continuava sem aparecer nas fotos. Será que eu havia deixado passar alguma foto? Será que ele era do tipo que saía de forma diferente numa fotografia de frente? Eu não fazia ideia, mas não tinha energia suficiente para continuar procurando, o sono havia me pego e eu precisava fechar meus olhos naquele momento.