Capítulo 3 Alfie Walkers

Eu era um fracasso. Minhas habilidades com o violino eram quase que vergonhosas. Tentava praticar com mais frequência, mas era como se eu simplesmente fosse incapaz de dominar aquele pequeno monstrinho em meus ombros. Eu amava a música, cada nota e toque que eu havia ouvido durante os últimos anos. O brilho intenso que emanava dentro de mim ao ouvir as canções dela me faziam amá-la cada vez mais, era amor, puro amor.

Naquele dia eu queria ensaiar a canção mais uma vez. Eu costumava ensaiar todo dia, e errava com frequência as mesmas notas. A cada cinco tentativas, eu falhava quatro. Eu só precisava alcançar ela de novo, mesmo sem saber se eu desapareceria logo depois, eu precisava alcançá-la.

A sala estava livre quando entrei. Era seguro, podia tocar tranquilamente. Ninguém ia se importar com aquela melodia, ninguém que não fosse ela. Então toquei, comecei leve e suave, quase como se estivesse pegando o instrumento pela primeira vez. Eu tinha confiança quando começava, mas ela morria lentamente. Um pequeno calafrio percorreu meu corpo e então percebi que eu tinha finalmente a localizado, depois de uma semana, eu a havia achado. Sabia que ela estava encostada na parede, ouvindo, e podia jurar que a ouvia cantar a música, mas a sensação durou pouco, em instantes, ela sumiu, e eu não senti mais nada.

Caminhando pelos corredores, evitando que o violino já guardado fosse empurrado pela pilha de estudantes que tanto sentiam dificuldade em tomar cuidado, andei procurando por ela. Eu não a via há muito tempo. Localizei-a sentada na sala de aula de psicologia. Aquilo não podia estar certo, Heather não devia cursar psicologia. Fiquei parado na porta, observando a aula acontecer e o foco que ela tinha ao assistir, por um instante, senti um calafrio e percebi haver algo de errado com ela, mas eu não podia fazer nada. Eu estava atrasado para meus próprios compromissos.

Cambaleando por entre os estudantes novamente, tornei a cruzar os corredores até finalmente chegar à sala anterior. Havia um ensaio, e eu estava atrasado. Eu sempre estava atrasado em tudo que realizava. Quando abri a porta, ninguém notou nada, continuaram tocando a sinfonia que já tocavam. Eu então rapidamente posicionei meu violino ao ombro, logo após puxar minha cadeira ao fundo. E então toquei, mais desafinado do que nunca. Ninguém notou. Continuei tocando e errando todas as notas, mas ninguém me repreendeu. Senti novamente um desconforto no ambiente e ao olhar para a pequena janela da porta vi de relance fios loiros se esvoaçarem rapidamente, longe da minha vista. Desapareci tão rápido quanto havia piscado meus olhos. Eu sumi de novo.

Sempre que acontecia, eu me esquecia de algo recente. Nunca do passado, jamais esquecia do passado, mas agora, nesta nova linha, me esquecia com frequência. Eu sabia que tinha sentido alguém, sabia que era dois corredores cruzados em relação à porta da sala de ensaio, mas não lembrava onde era, nem quem eu havia visto. Era uma garota, eu sabia que era, mas eu não conseguia deixar nada claro em minha mente. Eu procurava uma garota. Eu me lembrava perfeitamente dela no passado, lembrava de nós. Tudo isso coincidia com meu eu atual e eu já não conseguia visualizar aquilo do qual eu tinha certeza de que me lembrava. Poucas horas depois me lembrei de Heather, a garota a qual eu procurava, mas não lembrava de como ela se parecia. Quem era ela? A memória estava bloqueada. Era como se eu sofresse de perda de memória recente, mas eu tinha certeza de que não era isso.

Eu morava em um apartamento não muito longe da Universidade. Eu pagava o aluguel, ao menos achava que sim, embora não me lembrasse de nenhuma cobrança financeira. Costumava guardar o violino ao lado da cama, perto de uma moldura de fotografia que estava sempre em branco, na verdade, não totalmente branca, mas sim borrada em todo seu contexto. Imagine que sua visão está embaçada e que há pessoas na sua frente, mas você não consegue vê-las. Essa era a experiência ao olhar para àquela moldura, eu via e não via o que estava na foto. Ainda que visse, me esqueceria antes que pudesse, de fato, identificar os membros. O quadro me dava calafrios também. Não se engane, não eram sentimentos ruins, na verdade, era como uma adrenalina de borboletas no estômago, tomado de uma ansiedade sem igual, como se eu sempre estivesse ansioso por algo.

Tinham remédios no banheiro. Eu não me lembrava de tomar nenhum deles, mas sempre que via, faltavam pílulas. No início, achava que estava contando errado, mas após montar uma tabela de números sobre os remédios, percebi que de fato estavam sumindo. Como eu não podia confiar na minha memória, presumi que fazia mais sentido eu esquecer a quantidade ou esquecer que havia tomado, do que saber que meus comprimidos estavam magicamente sumindo por conta própria. Como de costume, eu não tomei nenhum deles.

Eu tinha um caderno de anotações. Anotava tudo que achava importante me lembrar. Eu sabia que Heather estava nesse caderno, porque sabia que havia pensado nela antes. O caderno não estava onde eu costumava deixar, se é que eu costumava deixá-lo em algum lugar. Procurei por todo o quarto, mas não o achei. Temendo me esquecer do nome da garota mais uma vez, anotei numa folha de papel e coloquei no bolso da calça. Não tinha como perder aquele papel, não tinha como perder Heather.

Eu não costumava utilizar o celular, na verdade, eu não tinha razão para fazer uso, por isso era mais cômodo anotar o que eu precisasse num papel, o que era irônico, já que os perdia com frequência.

Naquela noite, tive um pequeno flashback branco, não havia nada nele além de um branco brilhante e um frio quase insuportável. Parecia que eu ia morrer de hipotermia dentro do meu próprio cérebro. Pisquei meus olhos três vezes até perceber já deitado de cueca na cama, pronto para dormir. O relógio marcava quase uma da madrugada. Apaguei meu pequeno abajur e me debrucei no travesseiro macio, esperando a rotina me dominar com mais desafios diários.

Comprimidos faltando. Haviam dois comprimidos de cada frasco faltando. Eu me lembrava de não ter tomado nenhum, mas não conseguia afirmar qual era de fato a conta do dia anterior. Ignorei, pílulas eram o menor dos meus problemas, quer dizer, se eu fosse ter algum tipo de overdose, eu já estaria morto.

A água do chuveiro estava fria, e eu tremi no instante que a primeira gota caiu. Ouvi o barulho da chuva lá fora, típico do clima. Eu estava tremendo demais, não podia continuar naquela temperatura. O chuveiro se recusava a esquentar, se eu não fosse morrer de hipotermia na minha mente, com certeza iria morrer na realidade. Desliguei o chuveiro e peguei a toalha, me enrolando rapidamente, tentando conquistar um mísero calor. Algo me chamou atenção no chão, perto da porta. Reconheci a calça do dia anterior. Não me lembrava de ter a jogado no chão, mas ela estava lá, clamando por socorro. Acolhi a peça em meus braços, notando um pequeno pedaço de papel cair suavemente ao chão. Me abaixei e apanhei aquele mísero lixo. Antes de jogar na lixeira eu decidi abrir, mas não havia nada escrito, estava em branco. Joguei fora e coloquei a calça no cesto de roupa suja, que pelo terceiro dia seguido estava vazio, como se eu tivesse ido à lavanderia. Talvez eu tivesse ido e não me lembrado. Não era normal me esquecer por tantos dias assim, mas quem era eu para julgar aquele problema todo?

            
            

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