Capítulo 5 Dia da saudação

Por mais que eu soubesse que eu não deveria sair do hospital, eu precisava estar no velório, eles eram minha família. Eu os amei, eu os amo, e é tão difícil me imaginar sem eles. Depois de chorar e implorar para Ulisses, ele percebeu que se eu não fosse para o velório de um jeito fácil, eu com certeza iria, só que do jeito mais difícil.

Hoje também é o dia da saudação dos novos caçadores, éramos 28 alunos, depois ficamos em 6 e agora somos 4, cara que merda, toda vez que paro para pensar no que aconteceu me sinto mais culpado ainda, e eu não consigo parar de pensar.

O Campos está muito mais lotado do que de costume, talvez pelo que aconteceu ontem a noite, talvez porque as pessoas estão com medo do que possa vir, a maioria delas não está aqui para prestigiar os novos caçadores ou chorar pelos que se foram, elas estão aqui para saber o que aconteceu, como aconteceu e porque aconteceu. Os sorrisos são mínimos, contidos. O burburinho de como será daqui para frente é muito mais alto _ O que será da fundação agora? _ Cochichou uma mulher atrás de mim _ Ouvi dizer que vão ter que fechar por tempo indeterminado _ respondeu outra moça do lado. viro a cabeça, e por cima do ombro pergunto _ Fechar? Como assim fechar? _ É o que estão dizendo _ responde ela.

Um coro de palmas que é ouvido por todas as partes, tira minha concentração da conversa das duas mulheres. Sao eles, os guardas estão trazendo os 24 caixões acompanhados de suas famílias, os alunos que se foram são postos um do lado outro, todos vestidos de branco com uma flor de lótus que é o símbolo da fundação, delicadamente colocada no peito esquerdo de cada um deles dentro do caixão.

Ulisses segura em meu ombro assim que os caixões de Kira e Diego são colocados em nossa frente, assim como as outras famílias, Ulisses, a mãe e o irmão de Diego e eu colocamos as mãos nos caixões e ficamos 1 minuto em completo silêncio. A nossa energia e todo o nosso sentimento é passado para eles. Acreditamos que onde estiverem eles possam descansar em paz sabendo que morreram sendo grandes heróis, e sabendo também, o quanto nós os amávamos, e assim, com isso, tenham uma passagem calma e cheia de luz para o outro plano.

Por incrível que pareça nem uma lágrima cai dos meus olhos dessa vez, talvez porque eu já chorei tudo o que tinha para chorar, ou porque a única coisa que consigo sentir agora é raiva. O sentimento de vingança que estava adormecido dentro de mim desde quando o meu pai morreu, ressurge e me faz criar ódio mortal por qualquer ser sobrenatural que exista.

Ulisses enxuga as lágrimas, ajeita a gola do terno e diz em alto e bom som _ Tragam o ferro sagrado _

Ele nem deu tempo para nós nos preparamos, acho que ele quer acabar com tudo isso o mais rápido possível, e para falar a verdade eu também quero. Já não aguento mais todos esses olhares curiosos e cochichos maldosos sobre a noite de ontem.

O ferro sagrado é o que nos dá a marca do caçador, existe um processo, um ritual, para que a marca seja abençoada e a pessoa que a recebê-la tenha a tão sonhada proteção. O caçador mais antigo ainda vivo é quem marca os alunos. O velho Lauses como é chamado tem 124 anos, é o único caçador da noite a chegar nesta idade, ele vem acompanhado pelos guardas, com cara fechada e em completo silêncio ele apenas coloca o ferro no fogo e marca o primeiro aluno, e assim por diante. Não demora muito até que chegue em mim, afinal sobraram poucos de nós. Quando o ferro quente toca em meu braço tenho a sensação de estar sendo apunhalado por dezenas de espadas afiadas, que atravessam todo o meu corpo, me deixando quase que incapaz de ficar em pé. Fecho os meus olhos na esperança de seguir firme e não me espatifar no chão, que inferno de dor é essa? Nem um dos outros garotos se contorceu dessa forma, nunca, ninguém, desde que me entendo por gente se contorceu dessa forma. Todos estão me olhando espantados sobre a minha reação perante a marca.

O velho Lauses mergulha o ferro no barril de água benta e coloca em cima da marca de cada um recitando e repetindo três vezes o mantra do caçador "Tuere me et dirige me, quia nunc unum sumus" (Me proteja e me guia, pois agora somos um)

Ao encostar o ferro com água benta em mim, uma luz imensamente branca sai do meu braço iluminando todo o campo, fazendo com que uma força invisível surja e jogue a quilômetros de distância todos que estão ao meu redor.

abaixo devagar o braço que por impulso levei ao rosto por conta da intensidade da luz, meus olhos estão fechados, só consigo ouvir um zumbido muito alto em meus ouvidos, abro meus olhos de forma lenta e vejo ao meu redor todas as pessoas se levantando do chão completamente confusas e assustadas, olho para baixo e percebo que um enorme círculo queimado se formou embaixo dos meus pés, um dos alunos levanta e corri furioso em minha direção, com força ele segura meus ombros e me sacode gritando _ O que você fez? O que você fez?

Eu não consigo falar nada, por mais que meu cérebro formule alguma palavra minha língua é incapaz de se movimentar, minha respiração está lenta, meu corpo está calma, sinto como se eu fosse apenas uma pena solta flutuando no ar. Meu olhar percorre por todo o local, vejo pessoas desacordadas, pessoas feridas, olhares assustados que me comem vivo. A decoração está toda destruída, os pedaços dos caixões estão por todas as partes.

Após vários chacoalhões me dou conta de onde estou e do que fiz, balanço minha cabeça freneticamente tentando me convencer de que nada disso está acontecendo _ Eu não sei, não fui eu, eu acho ... EU NÃO SEI _ Grito de volta para o garoto enquanto saio correndo o mais rápido que posso.

Junto qualquer roupa que vejo por cima da cama, jogo todas dentro da mochila e tento sair o quanto antes, nada passa em minha cabeça, não consigo pensar em nada, meus pensamentos ainda estão confusos e apenas me dizem para sair da fundação.

Ao passar pela parede de vidro que eu havia quebrado na noite anterior algo chama minha atenção, ali está ela, a adaga que me ajudou a matar o monstro. Dou alguns passos finos até ela, mas não fico muito perto, mantenho uma distância razoável entre ela e a porta de entrada da fundação. A arma está tremendo e emitindo uma luz suave e discreta, diferente dá que surgiu em minhas mãos na noite passada. Neste exato momento sinto uma pontada em meu braço, passo à mão em cima da marca, mas não sinto nada, olho com pressa e a marca não está aqui, sumiu, em meu braço não tem nem uma cicatriz. Estou muito mais confuso do que nunca, estendo minha mão na direção da adaga e como um passe de mágica ela flutua de forma rápida do meio dos destroços da parede de vidro até a minha mão.

Antes que eu saia pela porta dou de cara com Ulisses que sem falar nada apenas se afasta para que eu passe.

            
            

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