Aquele lugar tinha se tornado seu santuário.
Ao redor dela, as crianças órfãs sob seus cuidados estavam rindo, brincando e exibindo seus sorrisos bobos para ela. A alegria inocente delas era contagiosa e, apesar da sua tristeza, Amy não conseguia evitar sorrir de volta. Era exatamente o que ela precisava.
- Amy! Venha brincar! – gritaram, correndo para se sentar em círculo, com um dos meninos brandindo uma pedra, triunfante. Taq Taqieh era uma das suas brincadeiras favoritas, parecida com o pega-pega em círculo da infância de Amy.
Ela estava lá, essencialmente, para estudar as crianças. Com seu mestrado em jornalismo recém-finalizado, Amy se viu subitamente sozinha e de coração partido na Flórida. Precisava de uma fuga e, então, levou seus estudos ao exterior. Natasha e Shatha, as duas funcionárias do orfanato em que ela tinha aterrissado, estavam mais do que felizes com a sua ajuda; e ela acabou mais ajudando do que estudando.
Para a pesquisadora, isso era horrível, mas para a mulher, estava sendo um grande conforto. As palavras do seu ex-namorado ainda retumbavam em seus ouvidos.
"Desculpe, gata. A gente nunca ia ficar junto depois do mestrado. Agora que eu sou candidato ao pós-doutorado, preciso de uma esposa. Alguém pra cuidar da casa enquanto eu estudo e, sinceramente? Você não nasceu pra ser mãe, não é?"
Não nasceu para ser mãe. Ela esteve com James por três anos. Conheceram-se no final da faculdade. Apoiaram um ao outro durante a pós-graduação. Quantas vezes ficaram acordados juntos, engolindo café e tomando sorvete enquanto trabalhavam em suas dissertações? Quantas vezes conversaram sobre casamento e sobre como seria a sua vida juntos?
Tudo mentira. Até o último sonho compartilhado. Ele não a enxergava como a mulher que um dia criaria seus filhos. Ela tinha sido a mulher que esquentou a sua cama e que estava ali quando ele precisava foder para esquecer as frustrações.
A memória lhe trouxe dor, mas ela a empurrou de lado. Com um sorriso luminoso, Amy correu para o círculo.
Aisha levantou a mão. A menina era tão forte quanto era doce. Natasha tinha explicado que Aisha, abandonada no orfanato com nada mais do que um nome preso com alfinetes à roupa, estava morando lá há quatro anos. Não era incomum ter uma criança abandonada no orfanato, mas isso geralmente acontecia com bebês, nascidos de mães solteiras que não conseguiriam sustentálos ou tinham vergonha de mantê-los. Uma criança de três anos era uma ocorrência rara. Shatha receava que a mãe de Aisha tivesse morrido e que, independentemente da razão, os parentes da menina tinham sido incapazes de cuidar dela.
No total, dez crianças viviam no orfanato, sete meninos e três meninas, variando de quatro a doze anos de idade. Não era raro os meninos atazanarem as meninas, mas Aisha estava sempre pronta para defender a si mesma e suas irmãs adotivas.
Embora Amy intercedesse quando necessário, ver alguns dos meninos fugindo de medo de Aisha enquanto ela os perseguia sempre a divertia.
- Bom, não quero saber de trapaça – Amy anunciou, tentando parecer severa enquanto se sentava. – Nada de fazer o amiguinho tropeçar, entenderam?
Os jogadores riram, divertindo-se à beça. Sacudindo a cabeça, ela segurou a mão do menininho que estava sentado perto dela. O mais velho pegou a pedra e todos cantaram juntos enquanto o menino caminhava lentamente em volta do círculo. Amy não se surpreendeu quando a pedra caiu ao seu lado e as crianças gritaram, rindo, ao vê-la engatinhar para pegar a pedra e começar a perseguição.
Depois de trinta minutos, as crianças ainda estavam com a corda toda, mas ela estava exausta e coberta de poeira, pois era a escolha favorita de todos para a corrida.
Clamando por sua rendição, ela estava sem fôlego ao se levantar.
- Continuem brincando – falou, tentando imaginar uma desculpa. – Eu tenho... coisas pra fazer.
E com essa desculpa esfarrapada ela foi para dentro, entretida pelos resmungos teatrais das crianças. A música recomeçou às suas costas no momento em que entrou no prédio. Natasha e Shatha estavam lidando com o grande volume de roupas para lavar, que parecia nunca acabar.
- Como posso ajudar? – Ela ofereceu, inclinando-se contra a parede e enxugando o rosto. – Qualquer coisa por uma pausa.
- Eles gostam mesmo de te fazer correr, não é?
Natasha riu, apontando a pilha de lençóis sujos. Ela estava quase na casa dos trinta, apenas alguns anos mais velha que Amy, e parecia adorar seu trabalho. Tinha crescido no povoado e queria ajudar. De família pobre, teve poucas perspectivas de casamento, mas isso não enfraqueceu sua alegria. Amy suspeitava, devido aos seus passeios tarde da noite, que Natasha tinha um namorado secreto, mas nunca perguntou.
Shatha era bem mais velha, na casa dos cinquenta, e tinha fundado o orfanato há vinte anos. Incapaz de ter filhos, ela levava as cicatrizes da decepção do seu marido; mas, quando enviuvou, fez bom uso do dinheiro da família e transformou sua casa em um orfanato. Era uma mulher rígida, que não gostava de falar sobre o seu passado, mas que protegia ferozmente todas as suas crianças.
- Não acho que seja por amor – Amy resmungou ao pegar um lençol. – Tenho quase certeza de que eles se ressentem de mim por algum motivo.
- Peguei um dos meninos vendo suas anotações – disse Shatha, franzindo a sobrancelha. – Ele estava confuso, porque não conseguia ler o que estava escrito.
Amy riu.
- Fico feliz por ter conseguido frustrar a tentativa. É uma forma de taquigrafia que eu desenvolvi há alguns anos. Meu cérebro trabalha mais rápido do que eu consigo escrever.
- Você está aqui há três meses. O que está escrevendo?
- Nada de mau – garantiu Amy. – Mas não posso divulgar minhas anotações, ou vocês podem começar a fazer as coisas de maneira diferente.
Na verdade, Amy estava mais do que impressionada com a administração do local. As crianças mais velhas iam à escola com as demais crianças do vilarejo, mas as menores de dez anos recebiam aulas no orfanato. Todas eram altamente inteligentes e curiosas para aprender mais.
Haamas era um reino progressista e que fomentava a educação de todos o mais igualitariamente possível. Nos poucos meses em que ela estivera lá, tinha constatado que o Sheik Iman estava ativamente trabalhando para melhorar a qualidade de vida para todos. Recentemente, tinha até mesmo se casado com uma americana, Natalie, e todo o reino tinha praticamente parado para celebrar com eles.
Infelizmente, as opiniões nos povoados afastados não eram tão positivas. Amy tinha ouvido mais de uma conversa sobre o sheik ter abandonado as tradições. Eles queriam o fim da família real.
Enquanto puxava outro lençol da pilha e o preparava para a máquina de lavar acionada a manivela, uma mancha marrom chamou a sua atenção. Franzindo a testa, levantou o lençol para examinar mais de perto.
- Isso parece vômito.
- Deixe-me ver – Shatha exigiu. Amy entregou o lençol e a mulher mais velha fez uma careta. – Venha comigo. Vamos checar as camas.
Deixando as roupas para Natasha, Amy seguiu Shatha até o alojamento dos meninos. Um exame rápido não revelou nada, mas, quando se dirigiram às camas das meninas, Amy se ajoelhou ao lado da cama de Aisha e gemeu.
- Ela deve ter tentado limpar. – Amy suspirou e apontou para a mancha na estrutura da cama. – Por que ela não contou a ninguém que estava doente?
- Aisha não gosta de perder nada. – Shatha se sentou e balançou a cabeça. – Nós deixamos as crianças doentes de quarentena, na casa de hóspedes dos fundos, para evitar que as outras sejam contaminadas. Pode demorar alguns dias até que o médico do povoado venha até aqui. Não estamos na lista de alta prioridade. Ela vai surtar.
- Eu faço companhia pra ela. – Amy se ofereceu imediatamente. Ela odiava pensar em Aisha completamente sozinha e desolada. – E vou conversar com ela. Ver se foi algo isolado ou se ela está doente de verdade.
Shatha sorriu.
- Ela realmente gosta de você. Mais do que de mim ou da Natasha.
- Sou uma novidade pra ela – Amy murmurou, mas não conseguiu evitar um sorriso.
Em uma rara demonstração de afeto, Shatha esticou o braço e apertou a mão da jovem mulher.
- Amy, você agora já sabe como eu me sinto em relação a estranhos. Não deixei você vir e observar minhas crianças pra que pudesse estudar. – Shatha sorriu com delicadeza, expressivamente, antes de soltar sua mão. – Pude ver a dor nos seus olhos. Seu coração foi partido e você está fugindo dessa dor. Crianças são grandes fontes de cura. Você não devia sentir vergonha do enorme amor que sente por elas, mesmo que essa não seja a forma científica de lidar com as coisas. Desfrute do seu tempo aqui e deixe que elas remendem o seu coração partido.
O sorriso dela mudou, e ela pareceu melancólica.
Sem palavras, Amy engoliu em seco e aquiesceu. Esperava que sua dor não fosse tão óbvia. Ela queria apenas ser uma observadora e uma escritora. Não alguma amadora que deixou suas experiências pessoais macularem seu trabalho.
Shatha curvou a cabeça e retornou à roupa suja, e Amy saiu de imediato para procurar Aisha. A menina estava na liderança de uma correria e mantinha-se à frente de um dos meninos mais velhos. Um pouco alta para a idade, ela era naturalmente rápida e ágil. Seu cabelo escuro voava atrás dela, pois seu hijabe desamarrou, e seus olhos azuis brilhavam com a animação.
De repente, a menina parou, segurou a barriga e se dobrou, vomitando ruidosamente.
- Aisha! – Amy correu na direção dela e a alcançou quando, apesar da ânsia, ela não conseguia mais vomitar. As outras crianças se afastaram e Amy sinalizou, com uma sacudida da cabeça, para que fossem embora. – Vão pra dentro.
Resmungando entre si, meninos e meninas pegaram o caminho para casa. Amy se ajoelhou e sentiu a testa de Aisha. A menina esteve correndo, mas, apesar disso, sua pele estava mais quente do que deveria e sua aparência estava péssima.
- Aisha, quanto tempo faz que você está doente?
- Não estou doente! – ela protestou. – Só corri demais.
- Nós vimos o vômito na sua cama. Você limpou pra gente não ver – Amy repreendeu com delicadeza. – Se você está doente, precisamos chamar o médico.
- Shatha vai me fazer ficar sozinha na casa de hóspedes, e eu não quero!
- É só por precaução, e você não vai ficar sozinha. Eu vou fazer companhia pra você o máximo que puder, ok?
Os olhos de Aisha se arregalaram.
- Promete?
- Prometo.
Amy franziu a testa quando ouviu a criança ofegar. Ela não tinha corrido tanto assim. Ela levantou lentamente a camiseta de Aisha e examinou o abdome. Havia uma marca de nascença pequena, em formato de coração, acima do umbigo da menina, e Amy sorriu. Parecia certo que ela fosse marcada com um coração.
- Isso dói? – perguntou. O abdome aparentemente não estava distendido, mas Amy queria se certificar de que Aisha não precisava ir ao hospital. Aisha balançou a cabeça. Amy colocou a camiseta de novo no lugar e bateu levemente no peito da menina. – Tudo bem. Vá para a casa de hóspedes; eu vou fazer uma malinha pra você e pegar alguns jogos. O que você acha disso?
- Não vai se esquecer do Kedar? – Aisha tinha uma conexão forte com seu polvo de pelúcia. Shatha disse que o brinquedo era a única coisa que Aisha carregava quando chegou.
- Não vou me esquecer do Kedar. Prometo.
Depois de encaminhar a menina, Amy ficou em pé e suspirou. Pelo jeito, seu primeiro artigo teria que ser adiado por alguns dias.