Capítulo 2 Em segurança

O embate no chão faz-me despertar e perceber onde estou. No meu quarto, na minha casa, em segurança! São 5 da manhã e eu estou bem, foi só mais um pesadelo.

Sinto o suor a escorrer por todo o meu corpo e decido ir tomar um duche. Fico um bom tempo debaixo de água a tentar lavar as lembranças de mais uma noite infernal. Saio quando me sinto realmente revitalizada e olho o meu reflexo no espelho tentando encontrar resposta para uma pergunta que tem pairado não minha cabeça. Quem sou eu?

Não sou quem era até alguns meses atrás antes de decidir mudar a minha vida.

O meu nome é Laura Sousa, tenho 29 anos, sou formada em arquitetura, vivo num bairro escondido em Lisboa a que agora chamo de casa. Não tenho família, os meus pais ainda estão vivos mas ausentes da minha vida há alguns anos. Talvez por culpa minha e das minhas escolhas no passado.

Olho novamente para o espelho. As manchas negras por baixo dos meus olhos revelam o cansaço e as noites mal dormidas que estão a ficar cada vez mais frequentes. Passo uma maquilhagem leve para disfarçar o meu aspeto, vou até ao armário e escolho uns jeans e uma blusa e preparo-me para mais um dia de trabalho.

O sol já começa a espreitar e a rua está quase deserta, apenas os vigias na entrada do bairro a garantir que a paz do bairro não é perturbada. Sigo o meu caminho para a pastelaria onde trabalho com a minha amiga Sónia. Conhecemo-nos na universidade e a nossa conexão foi imediata. Quando precisei de me esconder foi a Sónia quem me ajudou, deu-me casa e trabalho e um lugar seguro para renovar a minha vida. Não me fez perguntas. Foi ela quem me trouxe para o bairro da Luz. Um pequeno bairro escondido na cidade de Lisboa, com regras próprias e um código de honra que não pode ser quebrado se queremos continuar a morar aqui. Existe sempre uma equipa de vigilância, liderada pelo Rui, o chefe de segurança e braço direito do João Pedro, o líder do bairro, a quem todos chamam JP. São eles que fazem as regras e garantem a paz e a ordem no bairro.

- Bom dia! - digo tentando parecer animada ao chegar à pastelaria.

- Bom dia madrugadora! - a Sónia cumprimenta de volta notando o meu cansaço. - Não queres tirar o dia de folga?

- Porque haveria de tirar o dia se tive folga ontem?

- Não estás com muito bom aspeto... - disse a Sónia com uma careta.

- Muito obrigada! Sabe sempre bem ouvir elogios pela manhã! - retribui a careta.

- Tu sabes bem o que eu quero dizer... Voltaram os pesadelos?

- Sim, não foi uma noite fácil.

- Devias ir ao médico, consultar um especialista que te ajude a lidar com isso. - O seu tom era suave e cheio de preocupação.- Eu sei que gostas de viver na tua bolha, mas isso não está a fazer-te bem.

- Não precisa de te preocupar, eu vou ficar bem, é só uma fase. O que preciso agora é de um café forte e ir trabalhar.

Enquanto me dirijo para a máquina do café noto a entrada dos primeiros clientes, o Rui e o JP entram e seguem para a mesa mais recatada da sala. O Rui abre um sorriso afável assim que me vê e pede dois cafés, que eu me apresso a tirar. O Rui tem sempre um sorriso cheio de vida para oferecer, gentil e atencioso, certificando-se que quem está à sua volta está bem. Pela forma como os seus olhos verdes sempre procuram pela Sónia, posso garantir que sente muito mais que amizade e não tem medo que saibam disso. É completamente o oposto do JP, que tem sempre uma expressão séria e um ar sisudo. Os traços do seu rosto são duros e cheios de tensão e os seus olhos escuros são frios e sem emoção. Não sei dizer como seria o seu sorriso pelo simples fato de nunca o ter visto esboçar um. A sua presença imponente fazia qualquer um ficar em sentido.

- Obrigado! - O som forte rouco da sua voz fez-me estremecer e por pouco não derramei o café no seu colo, ficando apenas a chávena suja e uma pequena mancha na mesa. Senti um arrepio com o seu olhar a percorrer o meu corpo. Em três meses que vivo no bairro foi a primeira vez que o JP falou diretamente comigo, nunca antes o havia feito. Desde que aqui cheguei sempre tratei de tudo com o Rui, que neste momento tentava conter o riso que teimava em sair da sua boca.

- Peço desculpa, vou trazer outro café. - Apressei-me a desculpar-me e a limpar a pequena marca na mesa. Tentei manter-me firme, não deixando transparecer o nervosismo que aquela voz me causou.

- Não será necessário, este está otimo. - Aquela voz novamente... Como é possível estar toda arrepiada?

- Eu faço questão. - Quando tento alcançar a chávena sinto a sua mão a tocar na minha impedindo o meu movimento. Retiro a mão com a velocidade de quem levou choque elétrico.

- Eu já disse que este está bom. - Reforçou olhando no fundo dos meus olhos.

- Ok. - Foi tudo o que consegui dizer antes de sair dali a correr.

Entrei na cozinha a correr para tentar acalmar o meu coração que parecia querer sair do peito, encontrando uma Sónia que dava gargalhadas nada discretas com toda a situação. O mesmo consegui ver a acontecer com o Rui quando me permiti a olhar de volta para a mesa.

- Podes parar com isso? Não consigo ver qual é a piada!

- Desculpa, mas isso era porque não estavas a ver a tua cara de desespero.

- E isso tem piada? Quase deitei o café em cima dele! E tudo porque ele decidiu agradecer. Porque não manteve o tratamento de silêncio de sempre? Que vergonha!

- É por isso que estás toda corada? Pela vergonha? Ou será pela forma como se olharam?

- Estás a ver coisas onde não existem, não nos olhámos de maneira nenhuma. O que viste foi a tua funcionária quase a queimar o material do teu cliente! - As suas gargalhadas saiam cada vez mais altas, aumentando o meu desconforto. - Podes parar com isso?

- Desculpa, mas não consigo evitar. Prometo que vou tentar controlar-me. - Disse tentando parecer séria entre risos e espreitando para as mesas que se começavam a encher. - Temos clientes, é melhor ires lá atender.

- Eu não vou lá fora agora, nem penses nisso, eu fico aqui a preparar os pedidos.

- A última vez que verifiquei eu ainda era tua superior, por isso podes começar a atender. - A sua voz soou divertida e com uma pontada de provocação.

- Não acredito nisto! Eu odeio-te! - Reclamei tentando parecer o mais calma possível.

- Não odeias nada, ainda me vais agradecer.- A careta que lhe enviei fizeram-na soltar mais uma gargalhada.

Contra a minha vontade voltei para a sala e comecei a servir os restantes clientes, tentando ignorar a presença dos dois homens, que se prolongou por toda a manhã. De vez em quando sentia os olhos do JP em mim e voltavam os arrepios por momentos e o meu corpo parecia queimar.

O movimento aumentou bastante ao longo do dia e manteve-me ocupada, ajudando a passar as horas mais depressa. No fim do meu turno despedi-me da Sónia e comecei a caminhar para casa. Ansiava por um banho quente, uma refeição rápida e uma noite de sono decente.

            
            

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