As minhas mãos tremiam levemente, e eu evitava encará-lo diretamente, temendo a gravidade das palavras que ele poderia proferir. Aquela manhã havia sido um turbilhão de sentimentos confusos e angustiantes, e a presença de David apenas intensificava a dor. As suas feições sérias mostravam que ele trazia notícias que meu coração e minha mente ainda lutavam para assimilar.
O silêncio na sala era ensurdecedor, como se o mundo lá fora tivesse parado para respeitar a dor que eu sentia. Ele respirou fundo antes de começar a falar, e eu temi o que viria a seguir. A última coisa que eu queria era ouvir um adeus definitivo, mas a atmosfera pesada já havia me preparado para o que poderia ser uma revelação devastadora.
- Eu venho por um motivo... - começou pausando para avaliar os meus olhos arregalados. A sua voz, embora firme, tremia ligeiramente, e percebi que aquela conversa era tão difícil para ele quanto para mim. – O teu pai... ele deixou algumas instruções, coisas que realmente tens de tomar conhecimento. - As palavras saíram lentas e pesadas, como se cada uma delas fosse um tijolo assentado em um muro de resistência que começava a desmoronar diante da realidade.
Eu só conseguia assentir, e cada batida do meu coração parecia ecoar pelo espaço enquanto David continuava, as suas revelações mergulhando-nos em um abismo de incertezas e memórias. O luto nos unia naquele momento, transformando a dor em um vínculo silencioso de compreensão mútua.
- Repete, por favor, o que disse - murmurei baixinho, com lábios trêmulos.
Ele respirou fundo e disse:
- Foi uma tragédia sem precedentes... - gesticulou incrédulo, atrapalhado - O Ronald sofreu um acidente de aviação a bordo da nova aeronave. Como executivo sênior da empresa, não havia necessidade de ser ele a testar a aeronave. O avião despenhou-se vinte minutos após a decolagem. – Fez uma breve pausa, tirou um lenço do bolso, limpou o canto do olho e continuou com um sorriso triste. Sabes bem que, quando ele decidia fazer algo, ninguém conseguia lhe fazer mudar de ideias. Sinto muito pela tua perda, Alana...
Senti um turbilhão de emoções naquelas palavras. O impacto da notícia deixou-me atordoada, em estado de choque. A imagem do meu papá, sempre tão cheio de vida e determinação, maravilhado pelos seus esboços, inundava a minha mente. Aquele homem que me ensinou a sonhar alto e a nunca desistir tinha partido em busca do seu maior projeto.
- Não pode ser verdade... – David murmurou, com voz trêmula. - Ele sempre dizia que a aviação era sua maior paixão. Como foi que um desastre deste aconteceu? Ele estava tão entusiasmado com essa aeronave... infelizmente, o destino tem as suas próprias regras.
Respirei fundo e tentei apegar-me às belas memórias que tivemos: as tardes passadas na oficina, as conversas sobre o futuro da aviação, a forma como ele falava sobre a sua paixão como se estivesse a descrever um amor. Era isso que o fazia seguir em frente, estava sempre um passo à frente dos outros.
Finalmente uma lágrima escorreu pelo rosto do David, ele sentou-se pesadamente na poltrona de couro castanho que estava ao meu lado, tapou o rosto com a mão, sem poder conter um choro silencioso. Ele não perdeu só um cliente, perdeu um grande amigo. E eu o observava impotente, sem conseguir reagir pelo choque da notícia, e para o que implicava para o resto da minha vida.
- Lembras-te da última vez que estive com ele? - perguntou, a voz já um pouco mais firme. - Ele estava tão animado para o teste que quase não consegui fazer outro assunto entrar na conversa.
Sorri triste, e funguei.
- Sim, ele não parava de falar. E, mesmo assim, eu nunca imaginei que fosse ser a última vez ... – finalmente comecei a chorar copiosamente. Pela perda do meu papá.
Este foi o dia em que a minha vida acabou de vez. Foi o segundo funeral que não tive outra opção senão acompanhar, de coração despedaçado. Primeiro, perdi a mamãe, que sucumbiu depois de anos de luta contra o câncer, quando eu tinha dez anos, e agora o meu papá, com o qual me reuni há apenas três anos. Por quê? O que é que eu fiz de errado? O que é que eu vou fazer agora? Ele era tudo para mim... era o meu mentor, o meu herói. Será que eu voltaria para o orfanato?
Sim, vivi até os catorze anos num orfanato. Quando a minha mãe faleceu, a minha vida desmoronou. Fui encaminhada para o orfanato, onde as paredes brancas e frias não podiam esconder a tristeza que carregava no peito. Fui acolhida, mas nunca me senti completamente em casa. A luta pela sobrevivência emocional tornou-se a minha rotina. Aprendi a esconder os meus sentimentos, a construir muros ao meu redor, enquanto as noites eram preenchidas por perguntas sem respostas e saudades intermináveis.
Quando os meus pais se divorciaram, a mamãe não sabia que tinha um presentinho rebelde como eu a crescer no seu ventre. Foi um casamento muito conturbado, eram muito pobres e casaram-se por impulso sem pensar muito no amanhã. Por puro orgulho, a mamãe escolheu guardar-me só para ela e cresci sem conhecer o meu pai. Aos oito anos, vi-a dia após dia a lutar contra a doença que se apresentou superior aos esforços dos médicos e aos tratamentos agressivos. Observei-a a definhar lentamente, impotente, enquanto a perdia aos poucos.
Numa bela tarde de primavera, parei no lado de fora, respirei fundo e meti um sorriso de orelha a orelha no rosto quando entrei de rompante no quarto do hospital que ela partilhava com mais três pacientes, poisei a minha mochila na cadeira e virei para observá-la no leito, senti um nó na garganta. O seu rosto pálido e lábios ressecados partiram-me o coração, abracei-a carinhosamente. Dei-lhe um beijo suave na testa. Ela abriu os olhos, sorriu e sussurrou no meu ouvido aquelas que foram as suas últimas palavras.
- Alana, já não sinto mais dor, - tossiu fortemente pelo esforço que fez para falar, depois de alguns segundos conseguiu finalmente acalmar-se, pegou a minha mão, fechou os olhos e continuou com voz muito baixa e tremula - o teu pai chama-se Ronald White. Procura-o, ele é um bom homem que ama os aviões como tu, mas ele não sabe da tua existência, porque eu nunca contei nada sobre ti. Perdoe-me, filha, fui ingênua e arrogante...
Largou a minha mão e foi-se... perdia-a para sempre.
A mamãe era professora de História no orfanato. Foi este mesmo orfanato que me acolheu. Foram anos muito difíceis, o orfanato sobrevivia de doações. Sobrevivíamos como podíamos, mas nunca passei fome. Tornei-me uma criança triste e insegura. Com a ajuda da diretora, quatro anos depois, finalmente encontrei o meu papa.
Depois de toda a burocracia, um ano depois fui morar com ele, tinha quinze anos naquela altura. Ele era aventureiro e destemido, dei logo conta de quem herdei a teimosia. Tínhamos uma linguagem em comum, o amor pelas aeronaves. Eu rabiscava aviões por todos os sítios. Queria ser engenheira de aviação.
Toda a tristeza e o trauma de ter perdido a mãe foram aos poucos substituídos por um amor de pai maravilhoso. Ele era um homem muito gentil e bondoso. Lamentou muito por não ter feito parte da minha infância. Nos anos a seguir, fez de tudo para recuperar o tempo perdido e fê-lo muito bem. Mudei de cidade, de sobrenome e de estatuto, afinal de contas, nos últimos anos o meu papá enriqueceu muito. Por causa da sua paixão, tornou-se sócio da empresa que detinha o monopólio da aviação aérea do País, a Airspace & Co.
As roupas desgastadas e o único par de sapatos descolados e apertados foram substituídos por vestes e joias luxuosas. Estudava em uma das escolas mais caras e conceituadas do País, e vivia numa mansão grande demais para nós dois. Tinha as melhores professoras de etiqueta e os melhores perceptores. No princípio, eu estudava e aprendia com exímio porque queria muito agradar ao papá. Depois, acabei por gostar da minha nova vida. A adolescente triste e maltrapilha do orfanato tornou-se a senhorita Alana White.
As nossas viagens aventureiras e as noites passadas a desenhar aeronaves em silêncio foram um bálsamo para os anos em que fui órfã. Lembro das noites em que ficávamos acordados no escritório, esboçando projetos, cercados por papéis e modelos em miniatura. A excitação que carregava na voz sempre que falava sobre a próxima grande ideia. Eu não conseguia imaginar um mundo sem aquela paixão ardente. O mais importante foi realmente a amizade e as lições de vida que ele me inculcou, pois nenhuma riqueza será capaz de substituir o lugar que o papá ganhou no meu coração.
Olhei mais uma vez para os móveis cobertos, as silhuetas escondidas debaixo dos lençóis brancos pareciam fantasmas de um passado que eu mal conseguia lembrar. A sala de estar, que outrora fora o coração da casa, agora estava imersa em silêncio e saudade. O cheiro de poeira e abandono preenchia o ar, como se o tempo tivesse parado ali, entre aquelas paredes que haviam testemunhado tantas risadas e histórias.
Caminhei para a porta, com passos hesitantes. A luz do dia filtrava-se pelas janelas empoeiradas, formando raios dourados que dançavam no chão. O que o futuro me reserva? Essa pergunta girava em minha mente, insistente e angustiante. Ao lembrá-lo, a imagem do papá surgia, travada entre o amor e a dor da saudade. Ele havia sido tudo o que eu tinha, e a sua promessa de uma festa do século ecoava agora como uma lembrança distante e amarga.
Faltavam exatamente cinco meses para eu completar dezoito anos de idade. O papá prometeu-me a festa do século... mas ele não a conseguiu cumprir...