A tarde de outono estava exatamente igual ao meu humor, cinza e desagradável. Passamos por uma colina e havia bosques dos dois lados da estrada. Amo a natureza, mas não consegui sentir nada naquele momento, além de tristeza e desolação. Olhei pela janela novamente, tentando me conectar com aquele ambiente que sempre me trouxe paz. As árvores, majestosas e silenciosas, pareciam guardar segredos, e eu quis saber o que elas pensavam. Mas mesmo esse desejo se esvai com a nuvem cinza que eu trazia dentro de mim.
Saímos do centro da cidade e, quando dei por nós, estávamos a entrar numa área privada. Tudo à volta era extremamente bonito. A paisagem que passava pela janela era deslumbrante, com árvores altas e verdes, campos abertos e flores silvestres que dançavam ao vento. Olhei brevemente para o David que estava a dirigir a viatura, tentava decifrar a sua expressão facial. Eu não conhecia mais ninguém além dele e não tenho outra opção senão confiar nele.
Ele tinha o testamento do meu papá, mas aparentemente ainda não era a hora de abrir. Ele fez todo um mistério à volta deste assunto que perdi a vontade de continuar a questioná-lo e acabamos por fazer o trajeto todo em silêncio. Eu sabia que o verdadeiro caminho pela frente ainda estava repleto de incógnitas e decisões difíceis a serem tomadas.
Depois de duas horas de estrada, O carro luxuoso que nos transportava parou numa cancela. David limpou a garganta e olhou rapidamente para mim, voltou a concentrar-se na estrada e disse quando me viu a esfregar as mãos pela milésima vez:
- O teu tutor é um homem muito bondoso e generoso, ele vai cuidar bem de ti. Tenha somente atenção e um pouco de empatia, porque ele também está a passar por um momento difícil, tal como tu.
Olhei-o, questionando-o com o olhar, para que ele continuasse a falar. Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, chegamos a um portão imponente, cercado por flores e arbustos bem cuidados. A casa à nossa frente era grande e intimidante; tinha um charme rústico que sugeria acolhimento e segredo.
Entretanto, passamos por outro portão metalizado todo ornamentado e vi homens vestidos de ternos pretos que pareciam guarda-costas pelo caminho. Uma mansão deslumbrante apareceu diante de mim e fiquei boquiaberta, nunca vi uma casa tão grande, era majestosa. O meu tutor devia ser um bilionário. Não sei qual era o relacionamento que tinha com o meu papá, mas devia confiar muito nele, pensei.
O carro parou na entrada, onde alguns empregados estavam perfilados à espera. Fiz menção de abrir a porta, mas o David segurou-me pelo braço, virei-me bruscamente preocupada:
- Alana, disse franzindo a testa, não sei se fizeste o que eu pedi e te afastaste das notícias e da televisão por alguns dias.
Assenti.
- Pois, o presidente da Airspace & Co. também estava na aeronave, - suspirou - não houve nenhum sobrevivente.
Abri os olhos e levei a mão à boca de espanto. Ele balançou a cabeça.
- Eles eram grandes amigos, seria um voo como tantos outros que eles fizeram juntos. Quem haveria de imaginar que acabaria num desastre? O teu tutor é o irmão do falecido presidente e foi a ele a quem foi confiada a tua guarda. Tenha paciência, por favor.
Assenti, pensativa.
Um mordomo meticulosamente bem vestido estava ao lado da porta do carro quando desci.
- Menina Alana, seja bem-vinda à sua nova casa. Eu sou o Nigel, o mordomo, e estou à sua inteira disposição.
- Obrigada – disse baixinho – pode me chamar de Alana – fiz um sorriso de lado e caminhei entre a fileira de empregados, me sentindo desconfortável e ansiosa por tanto protocolo. Não via a hora de ficar a sós no meu canto.
- O jovem mestre está no escritório à vossa espera, é por aqui, por favor.
Assim que entramos na casa, o aroma de madeira e flores frescas encheu o ar. A luz suave filtrava-se através das janelas, criando uma atmosfera serena. A porta da entrada devia ter três metros, parei no meio do hall de entrada e olhei para o mais magnífico lustre. Cada objeto e escultura demonstravam a riqueza desta família.
O chão brilhante de mármore branco fazia ecoar os nossos passos pelos salões. Em poucos minutos, paramos em frente a uma porta, o Nigel bateu somente com um toque e convidou-nos a entrar.
O escritório chique e moderno exibia um design arrojado que transmitia elegância e sofisticação. As paredes de vidro permitiam a entrada abundante de luz natural, criava um ambiente iluminado e arejado. O mobiliário, todo feito em vidro, era uma obra de arte em si, com mesas de superfície transparente que refletiam não só a luminosidade do espaço, mas também transmitiam a sensação de frieza.
Quando ele levantou a cabeça, finalmente reconheci-o, era ele, o jovem dos meus sonhos. O tio Josh e ele foram à nossa casa há dois anos, jantaram conosco e depois ficaram durante várias horas no escritório com o papá. Lembro-me de ter perguntado o seu nome mas o meu pai levantou o sobrolho desconfiado, e não me disse o nome dele, desconversei desapontada e não falei mais sobre ele. Durante a refeição, eles tratavam-no por gênio. A verdade é que o encanto que aquele jovem despertou em mim era inegável.
A luz do ambiente refletia nos tecidos delicados do terno, perfeitamente engomado. A aparência era de um príncipe, não, devo dizer, de um verdadeiro príncipe. O seu andar era a definição de elegância, riqueza e arrogância. Tinha o rosto bem definido, com maçãs do rosto marcadas e um sorriso cativante. A carteira escorregou-me do ombro enquanto o observava trocando cumprimentos com o David. Olhos expressivos, com uma cor azul intensa, pararam na minha direção. Os meus pés ficaram colados no chão enquanto apreciava aquela obra de arte que, embora parecesse um pouco antipática, não lhe retirava o charme.
- Senhorita Alana! – David chamou, tirando-me do meu devaneio – aproximem-se e sentem-se, o que eu tenho a dizer é do interesse dos dois. Julgo que vocês não se conheciam, pois não? – Olhou inquisitivamente de um para outro e, como viu, não haveria resposta, suspirou impaciente, sentou-se e começou a abrir a sua maleta.
O Evan olhou para mim friamente e indicou a cadeira. Sentei-me calmamente e, quando ele se sentou ao meu lado, o cheiro da sua colônia deixou-me completamente inebriada. Quem cheira assim tão bem? inspirei e expirei profundamente, eu era apenas uma adolescente com as hormonas descontroladas, tinha que me controlar ou o meu tutor me mandaria de volta ao orfanato.
- Muito bem, podemos começar? - perguntou David.
Assentimos e ele continuou:
- Pois bem, quero mais uma vez transmitir os meus sentimentos de pesares a vocês pela grande perda que tiveram. Foi uma fatalidade...
O Evan respirou, impaciente, com uma carranca. O David engoliu em seco e continuou:
- Como advogado das vossas famílias, fui incumbido de gerir a leitura dos vossos testamentos e me certificar de que os desejos de ambos sejam cumpridos integralmente nos próximos anos. Pelo que, por favor, tenho cartas que o seu pai deixou, aqui está a senhorita Alana – entregou-me a carta. Aproximei-me e, com um gesto de encorajamento de David, recebi-a apreensiva, com as mãos trêmulas, abri a carta e depois entregou a outra ao Evan, que também recebeu. Vi-o abrir o envelope com elegância.
- Por favor, leiam as cartas na minha presença. – Pediu o David meio atrapalhado.
David era muito mais velho que Evan, mas a aura do Evan era de amedrontar qualquer um. Enquanto lia as primeiras linhas, uma mistura de emoções começou a se formar dentro de mim - ansiedade, saudade, expectativa. O meu nariz começou a fungar e não pude evitar soltar uma lágrima, parecia que o meu papá estava a falar comigo diretamente. Depois de acabar de ler a minha carta, eu assenti vigorosamente, secando as lágrimas com as mãos.
- Eu aceito as condições que o papá propôs. Eu vou assinar o documento. – respondi emocionada.
Olhamos os dois para o Evan, que estava visivelmente irritado com o que quer que estivesse escrito na carta dele.
- Que brincadeira de mal gosto é esta, David? – perguntou com dentes cerrados e olhar gelado – mas quem é que eles pensam que eu sou? Eles sabem em que posição me estão a meter?
- Tenha calma, Evan, não descontes em mim, eu estou a transmitir os últimos desejos dos vossos entes queridos. Não haverá leitura de testamento enquanto a Senhorita Alana não terminar a faculdade no curso de sua escolha. Depois da graduação, ela devera ser recrutada na empresa Airspace & Co., como estagiária. Após o estágio, então, a leitura será oficializada. Entretanto, durante este tempo, Evan será o tutor da Senhorita Alana, até ela terminar a faculdade.
Pulei do meu assento quando ouvi o barulho do copo que bateu contra a parede, caindo pequenos estilhaços de vidro no chão de tão furioso que o Evan estava.
- Eles enlouqueceram, só pode ser, eu não tenho tempo nem paciência para tomar conta de filho adolescente de outrem.
- Se enlouqueceram ou não, eu não posso afirmar. Tenha em mente que o teu irmão detinha 24% das ações, enquanto o Ronald tinha 17%. Somando com as tuas ações, fará 65%. Vocês dois, juntos, são acionistas majoritários. Ninguém te pode tirar da presidência enquanto tiveres a Senhorita Alana sobre a tua guarda, percebeste? E a senhorita Alana precisa crescer para saber gerir a sua herança. Ninguém é mais honesto que tu para ensiná-la a fazer isso. Eles fizeram isto para vos proteger, entenderam agora?
David tirou um acordo da maleta e o colocou em cima da mesa.
- Por favor, assinem o acordo em que vão cumprir, com as exigências, e voltaremos a ver-nos quando a senhorita Alana estiver a fazer o estágio na empresa. Estamos de acordo?
Evan levantou-se bruscamente, pegou na caneta e assinou, olhou para mim com desprezo, levantei-me e assinei o documento. Ele deu meia volta e dirigiu-se à porta com passos largos, não saiu sem antes dizer, com uma voz fria e desinteressada:
- O Nigel vai te apresentar a casa. Podes escolher qualquer quarto que não seja o meu, e o mais distante possível do meu. De repente, parou e olhou-me de cima a baixo, certifica-te de ficar bem longe de mim nos próximos anos. Garanto-te que nada te vai faltar. Qualquer coisa que precisares, podes falar com o Nigel ou o Roger, o meu assistente, e bateu com a porta, levando a sua carta na mão.
A minha respiração ficou presa na garganta, com o estrondo da porta que bateu. O que será que o tio Josh escreveu, que o deixou tão irritado? Olhei para o David aflita, de repente fiquei com o estômago embrulhado.
- David disseste que ele é bondoso e gentil – disse aflita, levando a mão ao peito – mas parece que ele não gosta de mim. – Terminei triste.
David, arrumou rapidamente o documento na sua maleta e aproximou-se de mim, pousou a mão no meu ombro com carinho, o meu olhar suplicava: leva-me contigo. Ele suspirou:
- Seja paciente, o Evan é um homem espetacular, ele está de luto e também inconformado com a morte do Josh. Ele está a lutar com a perda prematura do irmão, eram muito apegados. Tal como tu, ele é órfão de pai e mãe. Além do mais, ele teve que lidar com todas as questões relacionadas ao acidente pela primeira vez sem o suporte do Josh e tem dirigido a crise em que a empresa se encontra com mestria. Com vinte e cinco anos, eu nunca teria tal capacidade.
O Evan nasceu para os negócios, aos vinte e cinco anos tornou-se vice-presidente da Airspace & Co., e naturalmente assumiu a presidência depois do falecimento do Josh. Nem sei se ele já conseguiu parar para chorar o irmão. O Ronald sabia que não haveria ninguém melhor para ajudar-te na tua formação. Sei que és corajosa, confia na escolha do teu pai.
- Não te preocupes David, o legado do papá continuará vivo, farei de tudo para garantir que suas invenções não caiam no esquecimento. Não posso ficar aqui paralisada - disse, com uma nova determinação nos olhos. - Tenho que continuar o que ele começou. Ele sempre acreditou em mim, e isso significa que eu também devo acreditar nele. Ele dedicou a sua vida a criar, a inovar, e agora cabe a mim honrar esse legado.