Capítulo 3 3

Pedro ligou o carro para abafar a reclamação. Maldita a hora que decidiu voltar para a cidade. Duas horas e meia depois, ainda resmungando, Pedro atravessou o portal de Santa Hortência. Pequena cidade escondida entre as montanhas e uma densa floresta recoberta de um nevoeiro grosso e branco. Pedro deu várias voltas pelo centro da cidade. O nevoeiro deixava tudo tão opaco e escondido. Parou na pequena praça central. Não havia pessoas na volta. Não havia pessoas em toda a cidade. Pedro não viu ninguém.

O sinal da internet era horrível. Talvez por isso não houvesse turistas, mas para ser sincero, Pedro nunca ouviu falar dessa cidade. Cadê todo mundo?

Aos poucos o nevoeiro foi se espalhando e Pedro pode ver que a pequena praça tinha um coreto. Dentro do coreto havia um homem idoso. Pedro se aproximou. Precisava de orientações para chegar até a delegacia. A internet não funcionava e não ainda não havia encontrado ninguém para perguntar. O idoso não olhou para Pedro. Nem percebeu sua presença. Ficou pronunciando algumas palavras que Pedro só foi entender quando se aproximou mais um pouco. Isca, disse o idoso, sou isca, e ficou repetindo essas palavras sem parar.

Pedro decidiu deixar o velho curtir a loucura em que estivesse. Se pudesse também estaria em casa, no sofá. Adorava aquele sofá. Mas tinha coisas a fazer. Entrou no carro amaldiçoando a cidade sem a porra de uma alma viva! Ligou o motor e um enorme cão pretro atravessou na frente do carro. O animal mancava e rosnava para o nada ao mesmo tempo. Tinha horríveis falhas na pelagem e parecia cego.

Pedro dirigiu por mais alguns minutos até encontrar a delegacia.

Até que enfim, disse o delegado. Pedro se justificou. Havia errado o caminho na entrada da cidade. Precisou fazer o retorno de quase trinta quilômetros e o nevoeiro não havia ajudado em nada. Pelo contrário, tornou tudo mais complicado e perigoso.

O delegado parecia não se importar. Mantinha as mãos nos bolsos, confortável, quase indiferente. Disse que iria se acostumar. Avisou que na cidade havia somente um posto de combustível e um único hotel. Onde ele se hospedaria. A cidade era pequena e a população se espalhava pelo vale e nas florestas. Somos bastante auto-suficientes por aqui. Por anos dispensamos ajuda externa. Pedro acreditava que sim. Havia visto com seus próprios olhos a limpeza e a organização, mas não comentou a impressão fantasmagórica que a falta de pessoas e de comércio na rua lhe causava. Somente falou que era bem diferente. Bem diferente de onde vinha.

O delegado se mexeu. Cruzou os braços afirmando que a cidade grande era um caos. Foi nesse instante que Pedro percebeu que ao delegado faltava a mão esquerda. No lugar tinha uma prótese de madeira. Um acidente, disse, percebendo o olhar de Pedro. Acenou na sua frente. Explicou que foi um artesão local que fez na medida. Como pode ver, não precisamos de ajuda externa.

O delegado já sabia sobre a missão de Pedro. Trabalhou com Ximenes antes de assumir a delegacia. Para ele, a reabertura desse caso era uma perda de tempo. Estava convicto de que Ximenes aproveitou a distância da família para literalmente desaparecer. E o assassinato, perguntou Pedro. A investigação ficou parada até engavetar. Ninguém reclamou o corpo. Ninguém denunciou o desaparecimento. Se quisesse estudar o caso, os documentos se encontravam arquivados no porão.

O delegado levou Pedro para dentro da delegacia. Apresentou ele para dois policiais sonolentos e uma secretária empolgada – hum, gente nova na cidade. Passaram pela única cela e Pedro se surpreendeu ao ver atrás das grades o mesmo velho que viu na praça. Como ele chegou até aqui? Era só o velho Celeste. Um bêbado. Toda cidade tinha o seu.

Desceram as escadas do porão. O delegado abriu a porta de um cubículo e lá estavam. Centenas de caixas. Era por ali, em algum lugar. Boa sorte, disse o delegado.

Pedro passou o resto do dia procurando. Encontrou no exato momento em que a secretária apareceu avisando que todos já haviam ido embora e só restavam eles dois. Pedro mostrou a pasta abarrotada de papéis. Já tinha o que precisava.

Você sabe onde vai ficar, perguntou a secretária tentando ser solícita. Posso te indicar alguns lugares. Mas acabou ficando desapontada quando soube que já tinha estância marcada.

O hotel ficava mais longe do que ele imaginava. Longe e solitário. Não tinha muita coisa a se fazer, explicou o dono do hotel. Temos um posto de combustível do outro lado da cidade e passando ele tem um bar na beira da estrada.

Pedro espalhou os arquivos sobre a mesa. Afastou um pouco mais a decoração de plástico para analisar melhor as fotografias tiradas por Ximenes. As imagens eram brutais. O corpo de uma mulher trans esquartejado, reduzido a vísceras e ossos expostos e quebrados. Quem poderia fazer algo do tipo? Nos relatórios não era mencionado o possível responsável, mas dava a entender que aquilo havia sido um ataque animal. Lembrou de quando Davi e ele eram estudantes e se imaginava resolvendo casos assustadores como o que tinha espalhado na mesa. Ao longo de sua carreira, nunca havia se topado com algo assim. Apesar de todos os dados e imagens que tinha na sua frente serem repulsivos, se sentiu revigorado. A possibilidade de ter o seu nome envolvido com a resolução do caso o entusiasmou. Era disso que ele precisava: fazer justiça. Como vivia falando a Davi. O seu telefone tocou. Era ele, Davi. Mas esse não era o momento de compartilhar o entusiasmo. Deixou o telefone tocar até o silêncio retornar ao quarto de hotel. Precisava se concentrar nas imagens e na narrativa dos acontecimentos.

            
            

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