Capítulo 6 6

Pedro risca com raiva todos os nomes da lista. Ainda faltava um nome. O delegado disse que dessa vez estava por conta própria.

A próxima da lista morava ao final da estrada velha, passando pela floresta. Não chegavam carros até lá.

Pedro encostou o carro. Realmente não havia mais caminho a percorrer. Precisava seguir a pé. O sendeiro o levaria por dois quilômetros até chegar a uma pequena casa de madeira. Recebeu uma dica da secretária que era mais como uma advertência: a de não atalhar o caminho pelo bosque. Era mais curto, porém mais perigoso. Mas lá estava Pedro ao pé da floresta. Como podia ser perigoso? Visualizou uma fumaça por sobre as árvores e se embrenhou no escuro.

Era para a casa estar logo ali, disse Pedro debaixo de enormes árvores, estranhas aves berrando de algum lugar. O terreno estava úmido, a terra fofa e abafada. Meia hora depois de pular troncos apodrecidos e de esmagar cogumelos que nunca antes havia visto, Pedro assumiu em silêncio que estava perdido. Era só voltar, se disse chamando a confiança que começou a desaparecer. Foi se virar que o viu de novo – ou era um outro? Um grande, muito grande cachorro. Pedro estancou na hora. De onde saiu? Como não o tinha visto antes? O animal começou a rosnar. Salivava sem parar. Devia estar doente. Pedro deu um passo para trás e com muito cuidado pegou um pedaço de galho. O animal percebeu e não esperou, deu um pulo na direção de Pedro. Acertou o animal no focinho. Foi no reflexo. O enorme cão fugiu chorando.

Se Pedro retornasse por onde veio, corria o risco de se topar de novo com o animal. Não queria de novo essa experiência. Precisava continuar, mas quanto mais, se lamentava. Olhou para os lados e, com o coração ainda pulsando forte, sentiu que estava completamente perdido. As árvores eram todas iguais. Os gritos das aves eram cada vez mais angustiantes. Avançou até que sentiu o cheiro da fumaça. A casa devia estar próxima. E estava. Foi só dar mais alguns passos em direção à clareira que despontava entre as árvores, que a casa emergia uma salvadora.

A fumacinha saia pela chaminé. Pedro deu dois toques e a porta se abriu – como num filme de terror, ela também rangeu.

Uma mulher idosa estava sentada aos pés da lareira. Pedro entrou na casa pedindo licença, mas a mulher parecia não ouvir. Mais dois passos e Pedro percebeu que a mulher tinha um forte machucado na lateral do rosto. Ele tentou ajudar perguntando por parentes. Alguém que ele possa chamar. Não havia ninguém na casa. Somente a mulher idosa com o olhar fixo no fogo estalando. De repente ela começou a rir. Percebeu a presença de Pedro. Você é o tributo, perguntou sorrindo. Pedro não respondeu.

É você sim, afirmou se rasgando numa risada sádica.

A mulher se levantou da cadeira com dificuldade. Vestia um robe que a cada passo que dava em direção à Pedro foi se abrindo até cair no chão. A mulher ficou nua na sua frente, rindo, apontando o dedo. É você sim, repetia quase gritando.

Pedro fugiu da casa e fechou a porta. Tropeçou e caiu de costas.

A mulher surgiu na janela ainda mais louca, ainda mais sádica a gargalhada. Você, gritou abafada pelo vidro da janela fechada. Você! O tributo! Você!

Até que a expressão de alucinada desapareceu. Calou e se afastou da janela.

Quem é você, alguém queria saber. E o que você está fazendo no chão?

Era uma mulher mais jovem. Vestia uma espécie de macacão cinza. Perguntou se estava machucado.

Eu só tropecei, disse Pedro apontando para a casa.

De onde você saiu?

Pedro apontou para a floresta. Disse que se perdeu.

A mulher falou que era comum se perder. Ajudou Pedro a se levantar. O sinal de internet na cidade era péssimo. Aqui, para esses lados, ele nem existe. Por isso nunca deixamos o sendeiro. Venha comigo.

A mulher era cuidadora de idosos. Explicou que a cidade havia envelhecido muito rápido e muito mal. A maioria dos jovens tinha ido embora. Sabe como é, resmungou, correr atrás dos sonhos. Buscar novas oportunidades.

Você decidiu ficar, ressaltou Pedro.

A mulher disse que lá fora não tinha futuro. Meus velhinhos são especiais.

Para onde vamos?

A minha próxima paciente mora logo ali na frente. Sempre pelo sendeiro, sinalizou com as mãos.

Sim sim, disse Pedro. Havia entendido. Quiz melhorar sua cena: na realidade, continuou, não estava perdido. Apenas desorientado. Era novo na cidade.

O sendeiro era proteção, explicou a mulher. Como a cidade foi ficando desabitada, muita gente abandonou os cachorros por aqui. Outros foram largados na estrada e tiveram que se adaptar. Formavam matilhas e se espalhavam pela floresta. De vez em quando alguém se topava com um deles ou até com um grupo. Já aconteceram ataques. Acreditava que houve cruzamento com raposas e lobos, porque eram enormes.

Enormes mesmo, respondeu Pedro. havia se topado com deles na floresta.

Apenas um?

Pedro assentiu.

A mulher explicou que cães assim, solitários, são deixados pela matilha para morrer.

Chegaram a uma outra cabana. Era menor que a anterior. Não tinha fumaça saindo pela chaminé. Muitas pessoas idosas moravam sozinhas em cabanas espalhadas pela floresta. A cuidadora abriu a porta e disse que, no final, humanos e cães eram tão diferentes assim. O nome dela era Alba.

Alba foi simpática e alegre ao entrar na casa. Sua paciente estava na sala improvisada de dormitório. Alba explicou que a paciente era catatônica e exigia muito mais cuidado que todos os outros.

Você tem muitos pacientes?

Mais do que posso atender. Ela largou a mochila na cozinha e tirou pacotes de carnes e suplementos. O especial de hoje seria carne.

Quando terminou de cozinhar, colocou tudo no liquidificador. Pedro teve a impressão de ver a carne mal passada. Muito mal passada. Alba acionou o aparelho. Com muita dificuldade e barulho, um enorme molho vermelho se formou no copo. Ela olhou para Pedro e gritou que os tomates estavam lindos. Olha que cor linda!

Desligou. Você quer um pouco?

Alba achou na gaveta um canudinho de metal. Colocou dentro do próprio copo do liquidificador e ofereceu à paciente.

No início era sempre complicado. Agora conhecia a técnica. Alba forçou no canto da boca. Como fazemos quando damos medicamentos para algum animal. Depois induziu a um leve engasgo. Disse que era assim, era normal, e a paciente começou a sugar.

O que você veio fazer aqui, perguntou Alba.

Pedro explicou a profissão e o que buscava resolver: o desaparecimento do investigador Ximenes e o assassinato da mulher trans.

Alba se lembrava da história como uma lenda da cidade. Muita gente se lembrava dela assim, como uma lenda muito mais do que como um crime. Se é que você me entende, disse.

Pedro entendia muito bem. Já teve uma boa dose de intolerância.

A paciente engasgou com o alimento. O suco espesso e vermelho escapou pelo canto da boca. Os olhos da paciente ficaram marejados e fixaram no teto.

O que aconteceu com ela, perguntou Pedro.

Foram os cães, disse Alba. Foi atacada por uma matilha.

Pedro notou cicatrizes no braço da mulher.

Acharam ela na beira da antiga estrada. Havia perdido muito. Precisou de duas cirurgias. Você quer ver as marcas, brincou Alba.

Pedro negou. Pensou que aquilo seria imprudente e começou a suspeitar que as pessoas dessa cidade tinham alguma coisa de sádica nas atitudes.

Sobreviveu, continuou Alba, mas nunca mais foi a mesma.

A idosa voltou a se engasgar. Alba reclamou, mas limpou. Devia ser a ansiedade. Não era comum receber visitas. Só os mesmos velhos amigos de sempre.

Ela consegue nos ouvir?

Ela nos entende, disse Alba e a idosa engasgou pela terceira vez. Quando parou, seus olhos se fixaram em Pedro. Hoje ela estava particularmente difícil. Alba precisava se concentrar no trabalho. Você já conversou com a Loba, perguntou.

Pedro não sabia quem era a Loba.

A idosa engasgou de novo, dessa vez com mais força. Pareceu perigoso.

Era a dona do bar, disse Alba. Converse com ela.

A idosa começou a se debater. Os olhos estavam injetados de sangue. Pedro tinha de ir embora. Que bar, perguntou desde a porta, mas Alba não deu detalhes. Pergunte pela Loba, disse, tentando acalmar a idosa que se debatia cada vez mais.

Pedro fechou a porta com cuidado. Duas variáveis marcaram sua mente: Loba e nunca abandonar o sendeiro.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022