Capítulo 5 5

O delegado continuava firme. Não via necessidade de reabrir o caso. Se realmente quisesse ajudar, daria um jeito da internet melhorar e trabalharia na digitalização de todos esses casos arquivados. A cidade era pequena, todos de alguma maneira ou outra se conheciam e até podiam estar orgulhosos da sua auto-suficiência, mas sem uma internet de qualidade era impossível viver bem. Pedro concordou, mas nada lhe tirava o ânimo renascido. A vontade de resolver o caso e que seu nome esteja ligado a um sentido particular de justiça era grande. Resplandecia no olhar.

O delegado desistiu. Se você quiser, disse, te levo até essas pessoas.

Pedro tinha uma lista nas mãos. Começaria entrevistando cinco pessoas citadas nos documentos criados por Ximenes. Começou pelo criador de porcos. Sequer saiu do chiqueiro. Disse que lembrava do caso. Pobre rapaz. Aquilo devia ter sido um animal muito grande. Pobre moça, corrigiu Pedro. Os documentos comprovam que se tratava de uma mulher trans. Você chegou a ter contato com ela, perguntou. O criador de porcos chutou uma fêmea para evitar que se aproxime dos seus filhotes. Nunca na vida vi o rosto desse rapaz, disse e dessa vez chutou os filhotes.

O criador de galinhas tinha uma teoria. Essa gente, explicou de dentro do galinheiro, essa gente quer dominar o mundo.

O criador de ovelhas rompeu em gargalhadas quando ouviu a palavra mulher trans.

A dona da mercearia revirou os olhos.

O açougueiro nem levantou o rosto. Continuou cortando os ossos à base de machadadas.

Davi havia encontrado registros do policial desaparecido. Ximenes pediu a transferência para a pequena Santa Hortência. Não havia queixas sobre ele em nenhuma parte e os dados apontavam um excelente trabalho nas delegacias onde estava. Ficou em Santa Hortência pouco mais de um ano e pediu retorno para a sua antiga delegacia uma semana antes do assassinato que ele mesmo registrou. No final de cada documento, agora provas desarquivadas, constava sua assinatura legível: Antônio Ximenes. Delegado. A sua assinatura também se encontrava no final do documento que atestava o seu retorno para a delegacia de bairro. No dia seguinte à data dessa mesma assinatura, a filha de Ximenes, Liza Ximenes, fazia uma denúncia de desaparecimento – à época, Liza tinha dezesseis anos.

Davi liga para a delegacia do bairro centro. Precisava de mais dados, mais informação sobre o retorno de Antônio Ximenes para a cidade. Foi informado que esse tipo de informação demorava para ser obtida, mas que fariam o possível. Então ligou para Pedro. Dessa vez atendeu. Falou que estava descontente com a investigação. Até o momento tinha se topado com meia dúzia de orgulhosos transfóbicos. A vítima merecia justiça. Davi precisava ver as imagens. O que fizeram com ela foi horrível. Davi questiona quando isso começou.

Começou o que?

Quando começou a importar.

Pedro não respondeu. Travou, queria confessar que essa investigação havia mexido em alguma coisa dentro dele. Resolveu falar do passado como estratégia. Não queria ficar igual a um gato acuado. Lembrou de quando eram estudantes e imaginavam um futuro que definitivamente não se realizou.

Davi não tinha do que reclamar. Sempre teve uma expectativa baixa sobre o que esperar do amanhã.

Sinto saudades.

Saudades, perguntou Davi.

Saudades do seu sofá, respondeu Pedro revelando nas palavras um pouco de tesão.

Do outro lado não veio resposta. Pedro não podia estar sempre segurando as rédeas, dominando.

O silêncio deu espaço para sirene de ambulância, ao passo de uma bicicleta, pessoas pronunciando palavras. Nada mais, até a ligação caiu.

Pedro também desligou.

Davi chegou ao supermercado. O telefone tocou. Era alguém da delegacia retornando com a informação que pediu.

O rapaz do outro lado achava estranho o que encontrou – talvez fossem como as coisas eram feitas antes da internet. O documento assinado por Ximenes chegou pelos correios. Não tinha remetente. Enviado direto da cidade de Santa Hortência, o que soava um pouco antiético, talvez ilegal. Como assinar um papel assumindo uma delegacia em Porto Alegre sem estar na cidade?

Davi desligou pronto para retornar a chamada a Pedro. Desta vez ele seria direto. Teria a iniciativa da conversa. Dependendo do que ele falasse, a estratégia de investigação seria outra. Mas ele não deixou a ligação completar. João surgiu dobrando o corredor de laticínios.

João perguntou como Pedro estava. Não que ele se importasse muito, mas da maneira como tudo aconteceu, ele achou que Pedro poderia estar mal. Havia mandado milhares de mensagens extremamente tristes e depressivas. Quando começou com os xingamentos e a falta de respeito, João chegou a ficar assustado, mas manteve firme a decisão – você sabe como eu sou.

Davi ficou confuso. Pedro estava numa missão sem querer falar muita coisa. Que estava muito bem.

Típico dele, largou João mostrando uma intimidade que eles nunca tiveram. Ainda bem que me livrei. Davi não respondeu nada. Continuava um pouco confuso. João entendeu na hora a expressão. Pedro, Pedrinho, exclamou João, tão mentiroso como sempre. Um dia ele vai ver o lobo mau e ninguém vai acreditar.

            
            

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